O dia em que o menino Vladimir colocou a faca na cintura

“A cidade onde nasci, Itabaiana, na Paraíba, é uma vila muito antiga, lugar de adentramento desde pelo menos o final do século XVII, começo do XVIII, esse povo que chegou no litoral e foi caminhando para o sentido oeste, no rumo do sertão.

Era um centro boiadeiro, era um portal, o primeiro portal para o sertão. O gado ia sendo tangido e por onde os tropeiros passavam surgia um pequeno aglomerado, uma fazenda, uma capela, e assim o sertão foi sendo povoado.

E meu pai ali no começo do sertão. Digo que meu pai era um homem de sete instrumentos, de tudo ele entendia um pouco. Era arquiteto sem nunca ter frequentado uma faculdade, mecânico sem nunca ter feito curso.

O meu pai foi daquele pai que você adora, ídolo total. Ele tinha um tendência, uma vocação para as letras e as artes. Escrevia no jornal local, desenhava, esculpia, tinha uma fábrica de móveis. Quando chegava a noite, ele me botava na perna e fazia um carinho. Ele recendia a cedro.

Meu pai era um homem solidário, ele e minha mãe. Tinha um viés meio radical à esquerda, e minha mãe, muito católica, também. Ligados por uma intensa solidariedade. Minha mãe era uma referência na rua porque gostava de servir aos vizinhos. Maria José, Mazé. Meu pai, Luís, era conhecido como Mestre Lula.

Meu avô [por parte de mãe] era um artesão de couro muito acreditado, com muito prestígio entre os proprietários de terra, fazendeiros e vaqueiros. Ele fazia apetrechos de cavalo, arreios, fazia selas lindíssimas que eram verdadeiras obras de arte.

A minha cidade era um encontro de tangerinos e vaqueiros que vinham embarcar as boiadas na estação de trem de ferro. A cidade era um entrocamento ferroviário. Eu me lembro que tinha uma rampa na pequena estação, onde se tangia o gado para eles embarcarem naqueles vagões a descoberto.

A cidade era uma espécie de faroeste, porque muita gente vinha para a grande feira. Era uma coisa extraordinária… a zona de mulheres… virava uma festa. Tinha o pastoril… toda a vez que vejo um cancã no cinema me lembro dos pastoris, com aquelas mulheres dançando. A casa do meu avô era frequentada por essa gente.

Eu me acostumei a ver aqueles encouraçados, aqueles caras com roupa de couro da cabeça aos pés, parecia uma armadura da Idade Média, e o tilintar das esporas, entrando e saindo da casa, onde meu avô tinha a grande oficina de couro. E na feira, tinha o repente, o cordel, os bonecos de barro que precederam Mestre Vitalino.

Uma vez, eu tinha de oito pra nove anos, mexendo num baú na oficina do meu avô, no meio de muitas ferramentas misturadas com objetos de couro, encontrei uma espécie de miniatura de uma faca peixeira com um cabo de osso e numa bainha trabalhada em couro que meu avô tinha feito. Achei aquilo lá no fundo, meio enferrujadinha.

Aí, pedi a faca enferrujada pra ele e ele me deu.

E fiz que nem os homens que eu via, pus a faca aqui [no cós da calça]. Meus tios tinham uma faca assim. Era comum, para cortar uma coisa, para tratar do gado. Aí eu fui pra casa, que era na mesma rua.

Eu sem camisa, um calor danado. E a faca na cintura. O meu pai chegou, olhou e perguntou:

– Mas o que é isso?? Me dê isso aqui!

Fechou o tempo. E à noite, ouvi quando ele falou pra minha mãe:

– Precisamos tirar esse menino daqui.

Aí fui levado para a casa da minha tia que morava no Recife. Foi quando comecei a ser devidamente alfabetizado. Ainda voltei para a Paraíba, João Pessoa. Depois, de novo para o Recife, onde terminei o colegial.

Nesse tempo, um crítico de cinema chamado Jonald, era o pseudônimo dele, saiu do Rio de Janeiro com uma espécie de antologia mundial do cinema, várias latas de filme. Então ele viajou pelas capitais do Nordeste fazendo palestras e apresentando esses filmes, filmes russos, franceses, americanos, uns 10 ou 12 filmes.

No meio desses filmes veio um único documentário de longa-metragem. Não tinha atores no filme, não tinha uma história propriamente dita, era um apanhado de coisas da realidade.

Era uma coisa extraordinária, uma espécie de luta do homem com a natureza: pescadores que se aventuravam pelos mares para arpoar um tubarão, dias e dias, e depois voltavam à ilha onde moravam e aí retiravam o óleo e carneavam o tubarão.

O filme se chamava O homem de Aran, e aquilo foi uma coisa… Nesse momento, fui mordido pela mosca do cinema, uma epifania, uma revolução em mim.”

  • Retirado do depoimento de Vladimir Carvalho ao CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, 2010. Feitas pequenas adaptações no texto da degravação para facilitar a leitura.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.