O bicho está vivo (Por Miguel Esteves Cardoso)

Eu queria que a Kamala ganhasse e estava convencido de que ia ganhar. Até fiz apostas e tudo, gravadas em vídeo para não haver dúvidas.

Substitua-se a palavra Kamala por Hillary e podíamos estar em 2016: será que não aprendi nada em quase dez anos?

O único alento vem do eleitorado americano, que representa todos os eleitorados, em todas as democracias em que cada pessoa pode votar, e cada voto vale tanto como qualquer outro.

Qualquer eleição é magnífica. Representa o triunfo do indivíduo. Representa o triunfo da sensatez: todos aceitam que a maioria é que tem o direito de decidir.

No caso da vitória de Trump, tenho isto a dizer: quem quer vencer eleições não pode insultar a maioria. E também não se pode insultar as grandes minorias que facilmente se tornam maiorias. Não o pode fazer nem directa nem implicitamente. Tanto faz dizer que são deploráveis (Hillary Clinton) ou que são lixo (Joe Biden).

Nem é preciso chamar-lhes nomes: basta ficar calado e agir com a condescendência do costume.

O lixo reage mal. É que o lixo é constituído um a um. Cada bocado de lixo é diferente. E cada bocado de lixo pensa antes de votar.

Trump ganhou porque as mulheres não votaram todas como se queria que as mulheres votassem. Ganhou porque os negros não votaram todos como se queria que os negros votassem. Ganhou porque os latinos não votaram todos como se queria que os latinos votassem.

Votaram um a um, como eleitores que são. Recusaram-se, um a um, a corresponder ao que era esperado deles. E porquê? Porque não são grupos. Não são peças num tabuleiro. Não são blocos. Não são sondagens.

São indivíduos. São imprevisíveis. São desobedientes. São complexos – até para os amigos, até para a família. Só têm uma coisa em comum: não gostam de ser catalogados.

Não gostam que a individualidade deles seja diluída. Não gostam de raspanetes. Não gostam de ser tratados como criancinhas. Não gostam de receber ordens.

O bicho está vivo: o bicho é o povo.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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