SC na mira de canhões argentinos e mercenários alemães? Conheça a história de uma quase guerra

Você sabia que a vila do Desterro, antigo nome de Florianópolis, esteve a um passo de ser invadida por mercenários a serviço do governo argentino na terceira década do século 19? E que essa ofensiva tinha o objetivo de tornar a província de Santa Catarina uma república independente, seguindo as nações vizinhas que já haviam adotado o regime republicano?

E que o plano preconizava a derrubada da monarquia no Brasil a partir da capital catarinense, implantando um novo sistema de governo mais de seis décadas antes do que ocorreu em 1889? E mais, que a intenção dos mentores do plano incluía a possibilidade de sequestrar e, se necessário, assassinar o imperador Dom Pedro 1º?

Tentativa de derrubar a monarquia brasileira a partir de Santa Catarina aconteceu no contexto da Guerra da Cisplatina, ocorrida entre 1825 e 1828 - Foto: Reprodução/ND

Tentativa de derrubar a monarquia brasileira a partir de Santa Catarina aconteceu no contexto da Guerra da Cisplatina, ocorrida entre 1825 e 1828 – Foto: Reprodução/ND

Semelhante a um roteiro de filme de ação ou espionagem, esse episódio é narrado no livro “Guerra Cisplatina – Os planos das Províncias Unidas do Prata – Tomar e ocupar Santa Catarina e torná-la República”, do jornalista e historiador Nelson Adams Filho, lançado quarta-feira (11) no IHGSC (Instituto Histórico e Geográfico de SC), em Florianópolis.

O assunto não é de todo desconhecido pelos historiadores, tanto que há mais alguns deles no Brasil com publicações e interesse no tratado que previa a invasão, sem falar nos autores argentinos, que se debruçam sobre o tema com bastante frequência.

A diferença de Adams Filho é que ele conseguiu cópia do original do tratado assinado em 3 de novembro de 1827 por Manuel Crispulo Dorrego (1787-1828), então governador da província de Buenos Aires e presidente das Províncias Unidas, que se separaram do vice-reinado espanhol e declararam a independência em 1816.

A partir do documento, Adams foi atrás de mais evidências da tentativa de tomada da Ilha, que nunca mereceu atenção de pesquisadores catarinenses, à exceção de um breve comentário de Alexandre Boiteux (1881-1966).

“O plano da invasão chegou a ser proposto ao presidente que antecedeu Manuel Dorrego, Bernardino Rivadavia, por Friedrich Bauer (também escrito como Bawer), advogado, professor, jornalista e museólogo alemão”, conta Nelson Adams Filho.

“Rivadavia era do movimento unitarista, mais conservador, e recusou-se a endossar o projeto. Ele disputava o poder local com os federalistas, entre os quais estava Dorrego, que havia lutado pela liberdade do Chile, onde estudou Direito, e participou das lutas pela independência argentina”, relata o historiador.

Episódio foi relembrado pelo historiador Nelson Adams Filho - Foto: Divulgação/ND

Episódio foi relembrado pelo historiador Nelson Adams Filho – Foto: Divulgação/ND

Sublevação no Rio de Janeiro abortou plano de ataque em Santa Catarina

Para viabilizar seu projeto, Manuel Dorrego contava com o apoio de 400 mercenários alemães que estavam no Rio de Janeiro, na época, a serviço do Império, e demonstravam insatisfação com o tratamento recebido da Coroa brasileira. Eles viriam para o Sul do país, onde o sucesso da empreitada lhes garantiria terras, dinheiro e a liberdade que não tinham na capital do Império.

Uma sublevação desses mercenários, entre 9 e 12 de junho de 1828, abortou a tomada da província de Santa Catarina, programada para pouco tempo depois.

Nelson Adams Filho diz que Dom Pedro 1º sabia da trama de Dorrego, mas “não deu bola”. O imperador esteve no Sul do país em 1826, quando tentou resolver pendências da Guerra Cisplatina, que opunha Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata – ocasião em que passou por Santa Catarina e fez a pé o trajeto até a província de São Pedro do Rio Grande.

O imperador evitou ir por mar porque temia ser atacado antes de chegar ao destino. De volta ao Rio, ele teria sido avisado do plano de Dorrego por lorde Ponsonby, embaixador encarregado dos negócios da Inglaterra durante a Guerra Cisplatina.

Militar argentino Manuel Dorrego é personagem central da trama - Foto: Reprodução/ND

Militar argentino Manuel Dorrego é personagem central da trama – Foto: Reprodução/ND

A ‘morte teatral’ de Manuel Dorrego

Junto com Dorrego, o tratado de 1827 foi assinado por Friedrich Bauer, que se apresentou às autoridades brasileiras como “técnico em mineração” e, nessa condição, teria feito prospecções no interior de Santa Catarina.

Outro alemão envolvido foi o barão von Heine (há também controvérsias quanto à grafia do nome), que organizou e comandou um batalhão de alemães para participar da Guerra Cisplatina. Heine, no entanto, não assinou o tratado que previa a invasão da Ilha.

Depois que os ventos mudaram na Argentina, Dorrego caiu em desgraça e foi fuzilado, segundo Adams Filho, “usando por baixo uma camiseta com os nomes de seus adversários”. Era um político que defendia o voto dos pobres e a liberdade de imprensa, e hoje há praças e monumentos em sua homenagem na Argentina. “Figura única, ele teve uma morte teatral”, afirma o historiador.

Uma cópia do tratado escrito por Friedrich Bauer e que Dorrego assinou, na condição de presidente das Províncias Unidas do Rio da Prata, foi entregue quarta-feira ao presidente do IHGSC, Augusto César Zeferino.

Movimentos separatistas para enfraquecer o regime

O historiador Adams Filho suspeita que por trás das movimentações de Manuel Dorrego, Friedrich Bauer e von Heine estivesse a Inglaterra – empresas britânicas tinham interesse em colocar suas manufaturas na Argentina, mas o Brasil, durante o conflito da Cisplatina, bloqueou a entrada do Rio da Prata.

A opção pela invasão do Desterro decorria do bom calado e da fama de seu porto, que tinha servido de parada para embarcações desde o século 16. A região da Ilha de Santa Catarina sempre foi usada para o conserto de navios e o abastecimento das tripulações com víveres e água potável.

Além disso, tomar Porto Alegre exigia uma logística complexa, porque as embarcações deveriam vencer a entrada de Rio Grande, bastante vigiada, e navegar 300 quilômetros até a capital gaúcha. Também seria preciso enfrentar o calado reduzido da Lagoa dos Patos, coisa que as corvetas utilizadas na época não conseguiriam fazer.

Se o projeto fosse exitoso, segundo os estrategistas militares, o Rio Grande seria isolado do resto do país, sendo mais facilmente anexado à Cisplatina, configurando uma vitória sem precedentes sobre o governo imperial brasileiro. Isso incentivaria os movimentos separatistas, muito em voga após a proclamação da independência, e seccionaria o regime monárquico vigente.

Na época, de acordo com pesquisas feitas por Adams Filho, a província de Santa Catarina contava com cerca de 4.000 soldados, a maioria lotada na Capital. As fortalezas estavam ativas, o que poderia dificultar o ataque que acabou não acontecendo.

Historiador quer aprofundar pesquisas sobre o tema

Nelson Adams Filho admite que o tema de seu livro pede mais pesquisas e que há muitas lacunas que só uma investigação demorada, sobretudo nos arquivos históricos de Buenos Aires, poderá eliminar. “Fui muito bem recebido lá”, diz o historiador, informando que planeja voltar ao assunto, que chama de “um verdadeiro quebra-cabeças”.

Ele pretende fazer uma reedição com mais dados, porque só a cogitação de um ataque como o planejado na época é um prato cheio para qualquer historiador.

Membro do IHGSC, Adams é jornalista com 43 anos de atuação no Rio Grande do Sul. Bacharel em história, ele publicou, a partir de 2013, pelo menos oito obras, entre elas “A maluca viagem de Dom Pedro 1º pelo Sul do Brasil – Guerra Cisplatina”, “Piratas, corsários, naufrágios e canibalismo no Sul” e “Independência do Brasil pelas províncias de Santa Catarina e São Pedro do Sul”.

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