Nosso cérebro pode ser ‘hackeado’ e fazer com que as drogas assumam o controle? Sim.

María Ros Ramírez de Arellano, Universitat de València; Lucía Hipólito Cubedo, Universitat de València e Víctor Ferrís Vilar, Universitat de València

As drogas fazem parte da nossa sociedade, em todas as suas formas e aplicações. Do tabaco ao álcool, passando pelos opiáceos, sempre estiveram “na moda”. Constantemente, vemos na mídia notícias relacionadas à [crise do fentanil (https://theconversation.com/la-crisis-del-fentanilo-y-por-que-sus-consumidores-parecen-zombis-222145 “”), à legalização da cannabis e aos supostos efeitos antioxidantes do consumo de vinho (que, hoje, tem sido negado pela ciência). Mas qual é a base química que torna essas substâncias tão populares – e perigosas?

Um hábito antigo

A história do uso de drogas é quase tão antiga quanto a da Humanidade. Já na Antiguidade, inúmeras drogas, como o ópio, espalharam-se amplamente pelas civilizações da Bacia do Mediterrâneo, sendo aplicadas principalmente com fins medicinais. Apesar do alerta de pensadores como o grego Diágoras de Melos (século V a.C.) – “É melhor sofrer dores do que ficar dependente do ópio” -, a aplicação recreativa não demorou a chegar.

Outro exemplo de droga popular desde a Antiguidade é o álcool. Persas, gregos, chineses, egípcios, maias, romanos… Em todos os cantos do mundo, a produção e o consumo de bebidas alcoólicas faziam parte da vida social, espiritual e cultural de cada civilização. Hoje, a situação permanece: o consumo moderado de álcool na cultura ocidental é normalizado, legalizado e estendido a grande parte da população. Às vezes, filmes, televisão e música até glorificam sua ingestão, enfatizando seus efeitos eufóricos.

Qual é o segredo dessas substâncias? Como é possível que afetem a química do nosso cérebro a ponto de influenciar o futuro das civilizações?

A resposta está em um conjunto de áreas interconectadas de nosso cérebro conhecido como sistema mesocorticolímbico (de recompensa, euforia).

Minha dopamina está pregando peças em mim?

Para nos informar que um estímulo é benéfico para a sobrevivência, nosso cérebro se certifica de que gostamos dele. Exemplo disso são as sensações de prazer que experimentamos em uma refeição calórica, em interações sociais e no sexo.

Acompanhando essa sensação, nosso cérebro também sinaliza estímulos e nos faz aprender que gostamos dela: assim, temos mais chances de repetir aquela atividade positiva. Na verdade, graças a este sistema também teremos uma grande motivação, necessária para movimentar o nosso corpo e, assim, obter os estímulos citados acima.

Os comportamentos reforçados são sempre importantes para a sobrevivência? A resposta é não.

O sistema de recompensa mesocorticolímbico pode ser “hackeado”.

Em nível celular, as duas regiões mais relevantes desse sistema são a área tegmental ventral (grupamento de neurônios) e o núcleo accumbens (região do cérebro relacionada a recompensa). Os neurônios da primeira região se conectam com os da segunda e enviam uma molécula neurotransmissora chamada dopamina. Isso desempenha um papel essencial na recompensa: quando o nível de dopamina liberado aumenta, uma série de processos é iniciada. O resultado final é que aprendemos que o estímulo é importante para a sobrevivência e ficamos mais motivados a procurá-lo novamente no futuro.

Proteínas na superfície celular, chamadas receptores opioides, são responsáveis por isso. É aqui que entram em jogo as drogas e a invasão de sistemas: esses tipos de receptores podem ser ativados tanto por estímulos naturais quanto por drogas. Ao fazer isso, a liberação de dopamina é aumentada.

O resultado é que nosso cérebro gosta dessas drogas, aprende que são estímulos importantes e nos motiva a obtê-las novamente. Mesmo que elas não ofereçam nenhum benefício de sobrevivência.

Isso explica parcialmente os efeitos de euforia e reforço do uso agudo dessas substâncias. No entanto, é também a base do seu lado mais sombrio: o vício, a dependência. O que acontece quando a utilização de drogas se torna crônica?

A linha tênue entre euforia e dor

Embora o uso moderado de drogas seja normalizado e até celebrado em contextos sociais, pode desencadear problemas graves. A prática prolongada de consumo de álcool e outras substâncias não só afeta as nossas percepções e comportamentos como, também, deixa a sua marca no nosso cérebro de uma forma que pode ser difícil de reverter.

Lembremos que nosso sistema mesocorticolímbico é um sistema de recompensa, projetado para nos fazer sentir bem quando realizamos ações benéficas. Porém, o consumo repetido dessas substâncias pode fazer com que seu funcionamento se altere e o que antes produzia prazer não o faça mais na mesma medida.

Estas alterações nas capacidades de reforço do álcool e dos opiáceos devem-se, entre outras coisas, à redução da liberação de dopamina. Mas o que é responsável por essas alterações?

Assim como existem receptores opioides que provocam aumento na liberação de dopamina e são responsáveis pelo reforço positivo (receptor opioide Mu), existem outros que atuam de forma oposta (receptor opioide Kappa). Ou seja, sua atividade diminui a liberação do neurotransmissor e dá origem a efeitos opostos: disforia (sensação de desconforto, depressão, ansiedade etc), aversão e perda de motivação.

Durante o consumo repetitivo de substâncias como álcool e opioides, ocorrem mudanças na expressão desses receptores. Enquanto os receptores Mu tornam-se cada vez menos ativos, os receptores Kappa tornam-se cada vez mais ativos.

A diminuição da capacidade das drogas de gerar sensações de prazer faz com que elas se tornem menos gratificantes com o tempo. Este fato, aliado aos estados disfóricos que se manifestam na ausência da substância, levam a escaladas no consumo com o objetivo de autotratar o desconforto.

Este mecanismo é tão importante no vício que até foi criado um novo termo para ele: hiperkatifeia, do grego katifeia , que significa “desânimo” ou “estado emocional negativo”. Curiosamente, essas alterações nos receptores opioides são semelhantes às que ocorrem em situações de dor crônica e podem desencadear estados negativos como desmotivação, ansiedade e depressão.

O resultado final é que o uso continuado de certas substâncias pode ter graves consequências físicas, mentais e sociais, e alterar a forma como o nosso cérebro sente prazer e dor. Não é de se admirar que o vício em drogas leve pessoas a atingir o fundo do poço. Embora disfarçadas de aliadas para enfrentar os problemas, acabam se tornando o maior deles.

María Ros Ramírez de Arellano, Doctorando en Neurociencias, Universitat de València; Lucía Hipólito Cubedo, Profesora en el área de Farmacia y Tecnología Farmacéutica, Universitat de València e Víctor Ferrís Vilar, Doctorando en Neurociencias, Universitat de València

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