Estrutura empresarial, controle e violência: um raio-x da indústria imobiliária do tráfico e da milícia nas favelas do Rio de Janeiro

Ivan Zanatta Kawahara, Universidade Federal Fluminense (UFF)

Por muitas décadas relacionadas a uma ideia de urbanização precária e moradias improvisadas, já não é de hoje que as favelas e comunidades carentes do Rio de Janeiro vivem uma realidade habitacional muito diferente dessa visão antiga.

Um estudo realizado por mim e minha equipe sobre o mercado imobiliário das favelas cariocas revela uma complexidade intrincada. Por um lado, um contingente grande de trabalhadores regulares da construção civil, comerciantes e funcionários públicos, entre outros, que atuam na produção, venda e aluguel de imóveis legais. Por outro, uma forte atuação do tráfico de drogas e da milícia sobre esse mesmo mercado, o que envolve uma organização repleta de “laranjas”, corretores imobiliários, empreendedores e investidores.

Nesse contexto, o domínio territorial exercido na base da força por esses grupos armados permite que eles controlem a atuação dos agentes imobiliários formais, a partir da extorsão e da regulação forçada dos projetos de contrução.

O artigo “Os grupos armados e a organização do trabalho no mercado imobiliário”, publicado na Revista Cadernos Metrópole, é fruto de sete anos de investigação. Para produzir este estudo, utilizei entrevistas, monitoramento de mídia, levantamento bibliográfico, denúncias do ministério público e minha própria experiência em programas de regularização fundiária. Essa variedade das fontes utilizadas se deve à escassez de dados contínuos e de maior amplitude sobre o mercado imobiliário em favelas e ao agravamento dessa dificuldade no que diz respeito à atuação dos grupos armados nesse mercado.

Da invisibilização à tragédia da Muuzema

A produção imobiliária para aluguel é uma questão antiga nas favelas do Rio. Isso porque muitas delas surgiram a partir de conjuntos de casas construídas diretamente por proprietários, ou supostos proprietários. Em muitos casos, chefes de pequenos negócios locais, que alugavam essas casas para seus próprios funcionários.

Ao longo do século XX, essa prática passou a ser cada vez mais gerenciada pelo crime. O que não impediu que os próprios moradores regulares investissem na construção de seus próprios imóveis para alugar. Mas com a criminalização, esse universo da produção imobiliária para aluguel nas favelas foi se invisibilizando, e sendo deixada de lado tanto pela mídia quanto pelos estudos acadêmicos.

Até que, no dia 12 de abril de 2019, dois prédios construídos e gerenciados pela milícia local, o Escritório do Crime, desabaram na favela da Muzema, na Zona Oeste da cidade. Uma tragédia que matou 24 pessoas e fez com que a construção imobiliária voltada para o aluguel nas favelas do Rio voltasse a ganhar força na pauta midiática – ao mesmo tempo em que revelou o tamanho do envolvimento dos grupos armados nessa indústria.

O ocultamento das construções nas favelas, e a sua posterior revelação junto com a atividade dos grupos armados, fez parecer que todo o mercado habitacional nestas comunidades é dominado pelo crime. Meu estudo indica o contrário: a milícia e o tráfico de drogas operam em um mercado que já existia antes. E que, em muitos casos, é extorquido por esses grupos. O desabamento da Muzema reforça a necessidade de se compreender a intervenção dos grupos armados, mas também o mercado imobiliário nas favelas de modo mais amplo.

A estrutura empresarial dos grupos armados

A análise da produção imobiliária dos grupos armados indica que há uma organização com diversos agentes em funções distintas. Apesar das diferenças nas informações encontradas sobre a produção do tráfico e da milícia, há pelo menos quatro que são fundamentais e parecem exercer funções similares na organização dos dois grupos:

1) os sócios empreendedores atuam em sondagem de novas terras a serem ocupadas, ocupação, parcelamento do solo, gerenciamento das obras, divisão, venda, locação, administração e financiamento de imóveis e em todas as demais atividades necessárias para a exploração do ramo imobiliário;

2) os sócios investidores adquirem unidades imobiliárias dos sócios empreendedores, em fase de planejamento ou de construção, por preços mais baixos, buscando ganhos futuros com a venda e o aluguel desses imóveis;

3) os corretores fazem a busca de clientes e de terrenos passíveis de ocupação, administram a venda e a locação dos imóveis;

4) os laranjas assumem a titularidade jurídica de propriedades fundiárias, dos contratos com as concessionárias de energia e água, das empresas, das contas bancárias, dos contratos de aluguel e a responsabilidade das obras perante os fiscais, a fim de ocultar os verdadeiros proprietários e o modo de organização do grupo.

Ainda que os agentes da produção imobiliária dos grupos armados sigam uma hierarquia bem definida, isto é, todos sabem a quais ordens devem acatar, cada um deles parece agir com certa autonomia. Eles buscam a melhor forma de rentabilizar o seu negócio e são organizados para não prejudicarem uns aos outros e colaborarem com o andamento da operação como um todo.

Por exemplo, foram identificadas redes de informação, inclusive envolvendo agentes públicos, que alertam sobre a atuação da polícia e de órgãos de fiscalização para que os responsáveis pelas construções tenham a possibilidade de paralisar obras e esconder ligações clandestinas nas redes de água e energia elétrica. Quando o ato ilícito é descoberto, os custos com o suborno são divididos.

A autonomia dos agentes imobiliários é, ao mesmo tempo, uma forma de ampliar a capacidade de gerenciamento dos empreendimentos, envolvendo um número maior de pessoas nas operações, e de esconder o envolvimento dos agentes imobiliários com os grupos armados.

Quanto maior o número de empreendedores e investidores, menos concentrada parece ser a propriedade das edificações. Essa falsa distribuição se aprofunda com a presença dos “laranjas” que assumem a propriedade jurídica e gerenciam os imóveis.

Controle territorial e extorsão

Os grupos armados também tiram vantagens do seu domínio territorial. Em Rio das Pedras, foi indicado que a milícia local, através do domínio exercido sobre a associação de moradores, cobra uma taxa de moradores e de outros agentes imobiliários para construir além do segundo pavimento.

Na Rocinha, o mesmo ocorre a partir do quinto pavimento e para as construções em áreas públicas e que expandem os limites da favela em direção à mata. Esse é um modo de restringir a atividade dos concorrentes e ampliar os recursos para os seus próprios negócios.

Essa cobrança funciona como uma “taxa de proteção” contra possíveis embargos ou demolições executadas pelo poder público, ou seja, o que os grupos armados vendem é a capacidade de impedir a ação do poder público.

No caso das milícias, também foram identificados mecanismos de extorsão de terrenos e imóveis. Em Rio das Pedras há uma regra imposta pela associação de moradores que determina que o responsável por uma edificação que desabou tenha o seu terreno confiscado.

A extorsão de terrenos por dívidas provenientes dos esquemas de agiotagem das milícias também foi indicada em diversos casos. Além da ampliação dos estoques imobiliários da milícia, esses mecanismos garantem uma cobrança mais eficaz das dívidas dos moradores e evitam a presença das autoridades em função de desabamentos.

O impasse do poder público

A alta lucratividade da produção imobiliária nas favelas é sustentada por uma demanda crescente por habitações em sua faixa de mercado. A tipologia das habitações, geralmente prédios de quitinetes, indica uma preocupação dos empreendedores de adequar a produção à demanda nas favelas, buscando construir o maior número de unidades no menor espaço e com o menor investimento possíveis, barateando a unidade habitacional.

A grande demanda da população por essas habitações é mais um dos problemas no que diz respeito à possibilidade de fiscalização pelo poder público, inclusive nos casos das construções dos grupos armados.

As edificações construídas são rapidamente ocupadas e a sua ocupação gera um impasse para o poder público que não consegue fornecer habitações em volume suficiente. Em 2019, na Muzema, na tentativa da prefeitura de demolir os prédios edificados pela milícia, a Defensoria Pública ficou em uma encruzilhada, em que defender os moradores que adquiriram legalmente suas propriedades parece resultar em benefícios indiretos para a milícia. Os agentes do mercado imobiliário percebem esse impasse e incorporam em suas estratégias.

Ivan Zanatta Kawahara, Pesquisador do Grupo de Pesquisa Habitação e Cidade do Núcleo do Rio de Janeiro do Observatório das Metrópoles, Universidade Federal Fluminense (UFF)

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

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