Receita para separar o autor da obra

É um ciclo sem fim: um ídolo se envolve em alguma polêmica graúda, o mundo dos fãs que construíram suas identidades e gostos ao redor de uma obra colapsa e, então, urge separar o autor, agora condenado, de suas obras queridas. Afinal, deixar tudo pra lá é muito difícil, descartar material é complicado, apagar tatuagens custa caro e é preciso salvar algo. 

De tempos em tempos, pipocam acusações e sobram casos assim, independentemente da mídia em que se tornaram conhecidos ou se estão vivos. O caso que tomou conta da semana envolve Neil Gaiman, o premiado autor de Sandman e Deuses Americanos, entre outros trabalhos. As denúncias sobre crimes sexuais já vinham de meses, mas a reportagem da Vulture foi mais fundo e mergulhou no esgoto da vida íntima do autor para trazer relatos detalhados de assédio e estupro – que ele nega, claro.    

No Brasil, o caso mais recente talvez tenha sido do ex-ministro Silvio Almeida, sempre lembrado por seu trabalho respeitável como estudioso e seu discurso emocionante na posse: pessoas importam. Todas? Pra ele? Pelo que as denúncias indicam: não. Silvio ainda não foi interrogado pela PF, no entanto. 

É curioso observar como esse ciclo se forma, como funciona a criação de ídolos e o passo a passo: duvidam das denúncias, desacreditam a fonte, a ficha começa a cair, há o luto e aí passa-se à tentativa de separar o autor da obra. Para ficar nos casos recentes, em se tratando de Silvio, o gênero acadêmico ainda o resguarda, afinal tende mesmo a ser impessoal, mas como separar Gaiman de seu personagem Madoc, se parecem espelho um do outro? 

Uma arte bebe de todas as fontes possíveis e… do autor. Como seria diferente? São as experiências vistas, não vistas e imaginadas que, buriladas, se tornam o que vemos. Não há receita conhecida com proporções exatas de cada coisa. É tudo um punhado de “sal a gosto” que, de repente, agrada, é muito bom, bom demais, uma obra-prima feita por alguém que, afinal, descobrimos ser inescrupuloso, horrível, digno de nojo. 

A dificuldade em entender que ídolos são pessoas com inúmeras facetas chega a ser algo bonito de ver. O modo como J.K.Rowling era abraçada enquanto defendia a amizade, o amor e o feminismo em suas obras e depois como passou a ser ostracizada por ser transfóbica e apoiar transfobia é quase uma obra de arte. Não há nada de errado na mudança de posição, ao contrário, é algo positivo, mas é fascinante o caminho que percorre o ídolo do céu ao chão, antes inteiro e depois em pedaços, quase tantos quanto suas facetas – afinal humano, né? 

E não há julgamento aqui. Cada um sabe (ou descubra) o que fazer com o afeto que colocou em determinado autor e com a relação que estabeleceu com cada obra. Que apague tatuagens, que queime ou doe livros, que escute no sigilo, tudo como for conveniente ou seu estômago tolerar. Para os insistentes na separação, sugiro 1 serrote, 1 fórceps ou 1 alavanca, mas sem garantia de funcionamento e ainda sujeito às sanções penais. Boa sorte.

O post Receita para separar o autor da obra apareceu primeiro em Diário Carioca.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.