STF e CNJ pagam R$ 10,5 mil em diárias a juízes para morar em Brasília

São Paulo — Juízes auxiliares do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que receberam auxílio para se mudarem a Brasília têm abandonado o auxílio-moradia e escolhido receber R$ 10,5 mil mensais em diárias somente para trabalharem na capital federal.

JUÍZES DO STF E DO CNJ TÊM RECEBIDO DIÁRIAS EM ACÚMULO COM AUXÍLIO-MUDANÇA - METRÓPOLES
Juízes do STF e do CNJ recebem diárias mensais de R$ 10,5 mil como se fossem um “auxílio-moradia” turbinado

Decisões de acesso restrito ao longo dos anos na Corte e no órgão de controle externo do Judiciário abriram brecha para que juízes optassem entre o auxílio-moradia, que é de R$ 2,5 mil no CNJ e de até R$ 4,3 mil no STF, e um limite de 10 diárias de R$ 1 mil mensais. Basta declararem que se mudaram sem suas famílias para que magistrados recebam as diárias.

A prática fez com que diárias, que foram criadas para cobrir gastos de hospedagem durante missões e eventos oficiais, tenham sido usadas como uma versão turbinada do auxílio-moradia, criado para remunerar magistrados que moram fora de suas comarcas.

Diárias após auxílio-mudança

Um levantamento do Metrópoles identificou 19 magistrados auxiliares e um conselheiro nessa situação no CNJ. Já no STF, pelo menos 8 juízes auxiliares e instrutores dos ministros têm recebido os R$ 10,5 mil mensais em diárias. Todos eles são de fora de Brasília e receberam ajudas de custo que chegam a ultrapassar os R$ 100 mil para estabelecerem residência próxima da cúpula do Judiciário.

A reportagem identificou os casos de juízes pagos para morarem em Brasília a partir do cruzamento de nomes de magistrados que receberam diárias após perceberem auxílio para se mudarem à capital federal.

Somadas, as 2 mil diárias a juízes do CNJ custaram R$ 950 mil. Eles receberam, ao todo, R$ 2,1 milhões em ajuda de custo para poderem se mudar a Brasília, entre janeiro e novembro de 2024. No STF, a reportagem não pôde fazer o mesmo levantamento sobre as diárias, porque a Corte parou de publicar os pagamentos em abril de 2024. Os juízes que receberam mensalmente 10 diárias até essa data receberam R$ 367,8 mil em auxílio para se mudarem a Brasília.

Decisões restritas

As justificativas para esses pagamentos no Supremo Tribunal Federal partiram de uma resolução de 2019, aprovada durante um julgamento virtual administrativo da Corte — modelo em que apenas os ministros e servidores têm acesso aos votos dos ministros.

Ficou estabelecido que “juízes designados para atuar no STF que não optarem pela mudança de sede com sua família e não tiverem requerido auxílio-moradia terão direito ao recebimento de diárias pelo exercício das atividades no Distrito Federal, limitado ao máximo de seis por mês”. Anos depois, o STF aumentou esse valor para 10 diárias, o que tornou o benefício bem mais atraente do que o auxílio-moradia.

Após um pedido da reportagem, o STF concedeu acesso ao julgamento. A proposta de Toffoli foi aprovada por todos os ministros, à exceção do ex-ministro Marco Aurélio Mello.

Na mesma época, o presidente do STF, Dias Toffoli, deu esse mesmo direito a um juiz no CNJ em um processo restrito no Sistema Eletrônico de Processos (SEI), com acesso somente à parte envolvida.

Apesar de ser uma decisão restrita a um juiz, e não uma medida institucional da Presidência do CNJ, o despacho de Toffoli foi usado pela Seção de Passagens e Diárias do órgão para justificar o motivo dos pagamentos aos magistrados à auditoria anual interna do órgão.

Auditoria questionou pagamentos

O pagamento nesses moldes a juízes convocados pelo órgão para auxiliar conselheiros já havia sido motivo de duros apontamentos da auditoria interna do próprio CNJ.

Segundo o relatório referente ao exercício de 2023, o último publicado pelo órgão, o pagamento não tem amparo em qualquer instrução normativa do CNJ ou decisão institucional de sua presidência. Foi recomendado que o órgão levantasse casos assim para promover o ressarcimento ou que adaptasse suas normas sobre concessão de diárias.

Segundo a auditoria, foram detectados em 2023 pagamentos concomitantes de ajuda de custo e de diárias a 24 juízes e 4 conselheiros, dentre os quais foi possível evidenciar a mudança de domicílio permanente, para o DF, devido ao deslocamento com dependentes, de 7 juízes e 3 conselheiros.

Foram despendidos R$ 412.252,27 a título de ajuda de custo e R$ 567.619,92 em diárias, para magistrados e conselheiros que, segundo a auditoria, passaram a residir comprovadamente com a família no Distrito Federal.

Segundo a auditoria, o recebimento de diárias concomitante com ajuda de custo para viajar e se instalar em Brasília gera “duplo ônus ao órgão”. “Em relação a todos os magistrados e conselheiros que passaram a ter domicílio permanente no DF (derivado da concessão de ajuda de custo), não são devidas essas mesmas diárias”, concluiu.

De acordo com a auditoria, tanto a legislação sobre ajuda de custo, datada dos anos 1990, quanto instruções normativas do CNJ e decisões do TCU sobre o assunto não preveem esse acúmulo de benefícios. A Corte cita, inclusive, normativo interno do STJ que prevê a não percepção de diárias a quem recebeu ajuda de custo.

Juízes e conselheiro

Os casos levantados pelo Metrópoles são de juízes que receberam o limite de 10 diárias mensalmente por um período de pelo menos 10 meses seguidos — considerando recessos do Judiciário — que tenham pedido e recebido ajuda de custo para morarem em Brasília.

No Supremo Tribunal Federal, o juiz de São Paulo Walter Godoy dos Santos Júnior, que tem sido convocado há mais de 4 anos à Corte, recebeu R$ 101 mil para se mudar a Brasília, em 2022. Até abril de 2024, recebeu o máximo de 10 diárias mensais. Depois, ele se mudou para um imóvel funcional.

No CNJ, o desembargador Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, do Tribunal de Justiça de São Paulo, recebeu ajuda de custo nos meses de junho e outubro de 2019, que, somados, chegam a R$ 108 mil, para sua mudança a Brasília. Desde 2014, Lanfredi tem sido convocado a prestar serviços no CNJ. No ano de 2024, ele recebeu 110 diárias, no valor de R$ 116 mil.

Outra magistrada que há muitos anos presta serviços às Cortes Superiores é Roberta Ferme, juíza do Trabalho do Rio de Janeiro. Ela foi auxiliar da presidência do Tribunal Superior do Trabalho entre 2016 e 2022 e, em seu último ano na Corte, foi convocada ao CNJ. Em novembro de 2024, recebeu auxílio-mudança de R$ 37 mil. Entre janeiro e novembro, recebeu 110 diárias, no valor de R$ 116 mil.

O conselheiro João Paulo Schoucair, que é da Bahia e foi indicado à vaga do Ministério Público, recebeu R$ 84 mil para se mudar a Brasília, em agosto de 2024. Ele recebeu 80 diárias no valor de R$ 84,4 mil no mesmo ano. Schoucair está no CNJ desde 2022.

CNJ e STF defendem pagamento dentro da lei

O STF afirmou que “as diárias concedidas aos magistrados correspondem a um período mínimo de permanência no STF (10 dias), considerando que, nos termos da Lei Orgânica da Magistratura, os juízes estão sempre vinculados ao órgão de origem”. “Em regra, o Supremo Tribunal Federal deveria custear com diárias todo o período do juiz em Brasília. Porém, há uma limitação de 10 diárias mensais, mesmo que se dediquem integralmente ao STF”.

“Atualmente, o STF só paga diária para os juízes que não se mudam com a família para o DF, ou seja, que recebem ajuda de custo apenas para mudança do juiz. E os que recebem diárias atualmente não poderão pedir ajuda de custo para a família quando retornarem para a origem. Os magistrados que optam por auxílio-moradia ou imóvel funcional também não recebem diárias”, afirma.

“Em relação aos juízes mencionados, eles não tiveram nenhuma diferença em relação a outros magistrados nas mesmas condições. O juiz Walter Godoy deixou de receber diárias porque atualmente ocupa um imóvel funcional”, conclui a Corte.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afirma que se ampara em uma decisão do Tribunal de Contas da União de 2021 que considerou a missão de magistrados convocados para auxiliar o STF como “transitória” e “temporária”. Por isso, segundo o órgão, juízes continuam vinculados a seus tribunais de origem e podem receber as diárias nessas condições.

O Metrópoles obteve acesso ao acórdão do TCU e não identificou menções expressas ao pagamento de diárias após o recebimento de ajuda de custo para mudança de domicílio. Trata-se de um precedente diferente daquele que foi usado pela auditoria para afirmar que o TCU não permite a prática. A auditoria citou um julgado de 2007 da Corte de Contas para questionar os pagamentos.

O CNJ afirma, ainda, que uma resolução de 2009 “prevê que o magistrado ou o servidor que se deslocar, a serviço, em caráter eventual ou transitório, da localidade em que tenha exercício para outro ponto do território nacional ou para o exterior, terá direito à percepção de diárias, sem prejuízo do fornecimento de passagens ou do pagamento de indenização de transporte”.

O CNJ ressalta que seu normativo interno prevê o pagamento de diárias a juízes que não possuam domicílio permanente no Distrito Federal no valor de até 10 diárias. “Importante acrescentar que não somente juízes, mas qualquer servidor público tem direito a diárias pelo período em que se afasta de sua sede, nos termos do art. 51 da Lei 8.112/1990, cujos valores e condições para sua concessão são estabelecidos em regulamento.”

“A Lei Complementar n. 35/1979, que dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, em seu art. 65, estabelece que, além dos vencimentos, poderão ser outorgadas aos magistrados, nos termos da lei, vantagens como ajuda de custo para despesas de transporte e mudança, ajuda de custo para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do magistrado, diárias e outras”, diz o CNJ.

“No âmbito do CNJ, quando há a opção pelo recebimento de diárias, a Instrução Normativa n. 10/2012 prevê um limite de 10 diárias, mesmo que o magistrado trabalhe tempo superior a 10 dias no mês”, conclui.

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