Neonazismo dos bilionários: desigualdade é virtude (Bräulio Rodrigues)

Joshua Haldeman, também conhecido como o avô materno de Elon Musk, esteve envolvido com o autodeclarado Movimento Tecnocrático Canadense durante as décadas de 1930 e 1940. A Technocracy Incorporated propunha que cientistas e engenheiros deveriam ser os governantes e os reais políticos, acreditando que isso também solucionaria todos os problemas sociais.

Os integrantes do movimento adotavam um “X” em seus nomes e utilizavam roupas e veículos cinzas, elementos que remetiam a movimentos fascistas da época. Com a entrada do Canadá na Segunda Guerra Mundial, o grupo foi proibido e classificado como uma ameaça à segurança nacional, o que levou à prisão de Haldeman por suas atividades políticas ilegais.

Após deixar o Canadá, Haldeman mudou-se para a África do Sul, onde manifestou apoio ao regime do Apartheid, declarando que o país representava a “liderança branca do mundo”. Em 2023, Elon Musk foi criticado por denunciar o que chamou de “genocídio branco” na África do Sul, após Julius Malema, líder do partido sul-africano Combatentes da Liberdade Econômica (EFF), entoar a música Kill the Boer em um comício. Malema reagiu chamando Musk de “ignorante” e afirmou que a canção fazia parte da resistência ao Apartheid.

Para título de esclarecimento, a música Kill the Boer (em tradução, Mate o Boer) tem origem no contexto da luta contra o Apartheid na África do Sul. Durante o regime segregacionista, que vigorou oficialmente de 1948 a 1994, muitas músicas de protesto foram compostas como forma de resistência contra a opressão racial. O termo Boer refere-se, historicamente, aos fazendeiros brancos de origem africâner, um grupo que desempenhou papel significativo na governança do Apartheid. Além disso, em novembro de 2023, a Casa Branca repreendeu Musk por divulgar teorias conspiratórias antissemitas em suas redes sociais, considerando as ações do bilionário uma “promoção deplorável” de opinião discriminatória, e logo, antissemitismo.

Em janeiro de 2024, em um ato evidente de mea-culpa, Elon Musk visitou o campo de concentração de Auschwitz acompanhado de personalidades como o comentarista político Ben Shapiro e o sobrevivente do Holocausto Gidon Lev. A visita ocorreu após críticas contundentes sobre como a plataforma X, anteriormente Twitter, lidava com conteúdos antissemitas. Durante a visita, Musk afirmou ter sido “ingênuo” sobre o antissemitismo, mas reiterou que não percebia o preconceito em seus círculos na plataforma.

Não há erro ou engano. Elon Musk pode negar ou ironizar com deboche a interpretação de que seu gesto, durante a posse de Trump, foi uma saudação nazista. Mas a história não mente. A filiação de seus avós ao Partido Nazista Canadense, o privilégio de seu pai com as minas de esmeralda em meio ao Apartheid sul-africano e o patrocínio pessoal de Musk ao partido alemão AfD, que defende a anistia para soldados da SS, não são coincidências isoladas. São fragmentos de um quebra-cabeça que revela uma afinidade ideológica preocupante.

Se há um manifesto por vir é uma doutrina que, tal como o nazismo original, se mascarará sob a ideologia dominante de seu tempo para legitimar o uso da força e a concentração de poder.

O culto ao mérito e a desigualdade como virtude

Assim como o nazismo hitlerista se autodenominava “nacional-socialista” para se apropriar da linguagem de um movimento de massa que contestava o establishment, o neonazismo contemporâneo pode se apropriar do libertarianismo, utilizando seu apelo à liberdade individual e ao livre mercado para se capilarizar em termos totalitários. Uma doutrina nazista libertária, patrocinada por bilionários, pode parecer, à primeira vista, uma contradição ideológica intrigante. No entanto, não é impossível, dado que ambas as vertentes compartilham elementos autoritários e hierárquicos que podem ser reinterpretados para justificar um modelo de controle elitista sob o véu da “liberdade”. Imagine uma fusão cibernética entre o autoritarismo racial e cultural do nazismo com o individualismo extremo e a desregulamentação promovida pelo libertarianismo. O resultado seria uma distopia tecnocrática conduzida por uma elite midiático-econômica, onde a liberdade é redefinida como dominação privada.

Esse princípio talvez já seja o mais palpável. As redes sociais estão contaminadas pelo ódio ao trabalhador. No discurso que apela ao “nós contra eles”, a ameaça sempre vem de fora: o imigrante, o latino, o bárbaro. É sempre o estrangeiro o culpado por todos os males, injustiças e doenças. O neonazismo “libertário” exalta uma versão deturpada do “mérito”, na qual a riqueza acumulada é vista como a expressão máxima da superioridade humana. A desigualdade não é apenas aceita, mas glorificada como evidência de que os mais ricos possuem direitos e capacidades inatas que os tornam líderes naturais. É um direito divino dos reis reinventados, onde bilionários são vistos como deuses que caminham entre nós, uma nova aristocracia tecnológica com o poder de definir o que é o ser humano.

Eugenia e a ciência da boa herança

O segundo passo parece distante, mas logo chegará às manchetes como uma boa nova. As pesquisas de implantes e próteses, como o Neuralink — dispositivo do guarda-chuva de empreendimentos de engenharia social de Musk —, propagandeado como capaz de curar doenças do sistema nervoso e aperfeiçoar habilidades cognitivas, são exemplos de como esse neonazismo libertário abraça a eugenia e o transumanismo. Sob o pretexto de eficiência econômica e inovação, justifica-se a exclusão de grupos “menos produtivos” ou “menos adaptáveis”. Inclusive, a recente política de Zuckeberg ao declarar que demitir 5% dos seus funcionários menos produtivos já demonstra isso.

Em seguida, veremos como os avanços em bioengenharia e inteligência artificial podem facilmente ser utilizados para criar uma elite cibernética, enquanto as massas periféricas são relegadas à própria sorte ou transformadas em mão de obra descartável. A disparidade educacional entre países ricos e pobres já é um prenúncio desse futuro distópico.

Em um texto do início dos anos 2000, “Regras para o Parque Humano” (Regeln für den Menschenpark), o filósofo alemão Peter Sloterdijk aborda a eugenia de maneira provocativa e polêmica, situando-a no contexto de uma crítica mais ampla sobre o papel da cultura e da tecnologia na formação da humanidade. Sloterdijk fala sobre como a humanidade tem buscado domesticar a si mesma ao longo da história, comparando os seres humanos a animais que precisam ser domesticados por meio do “humanismo”, e mais recentemente, pela técnica.

Liberdade, sim! Para quem pode pagar

Sloterdijk não defende a eugenia, mas a utiliza como um ponto de partida para refletir sobre os desafios éticos e existenciais que a humanidade enfrenta em uma era de revoluções tecnocientíficas. Ele nos convida a pensar criticamente sobre como essas tecnologias podem ser usadas e quem decide o que significa melhorar a humanidade. Seu trabalho parece, inoportunamente atual, e um alerta sobre os perigos de uma eugenia disfarçada de progresso, bem como um chamado para repensarmos as regras que governam o parque humano em que vivemos.

Ademais, o caminho desse parque é ressignificar por completo o sentido de liberdade, de modo a privatizá-lo inteiramente. Ao invés da liberdade no sentido universal, o que teremos será a “liberdade como serviço”. Seremos todos escravos de incontáveis telas de co-working, cuja riqueza da produção se reverte integralmente para os poderosos, que não têm mais qualquer restrição sobre os nossos corpos. O Estado será desmantelado ou transformado em um instrumento de defesa dos interesses privados, enquanto as liberdades individuais das massas serão subordinadas às vontades dos donos do capital. A livre iniciativa será a justificativa máxima para práticas exploratórias e excludentes, apresentadas como uma escolha voluntária dos indivíduos.

Daytrader ou o colaborador nosso de cada dia

O meio para a legitimação desse totalitarismo 2.0 já pode ser visto. O culto à extrema riqueza transforma o burguês em herói. Tecnologias avançadas de comunicação e redes sociais são utilizadas para disseminar uma ideologia que glorifica o sucesso individual e culpa os fracassados por sua própria situação. A manipulação emocional e simbólica é fundamental para assegurar a adesão popular a uma estrutura de dominação disfarçada de liberdade. A propaganda não apenas vende produtos, mas também ideias, valores e visões de mundo que consolidam o poder da elite. É assim quando vemos hoje o fetichismo de artigos de luxo serem o meio para o esvaziamento da dignidade humana.

Jean Baudrillard descreve a hiper-realidade como um estágio em que a distinção entre o real e o simulado desaparece. Nesse estágio, as imagens, os signos e as narrativas midiáticas não apenas refletem a realidade, mas a produzem. A propaganda e a manipulação cultural funcionam justamente nesse espaço, onde a realidade é construída por meio de simulações que moldam percepções, desejos e comportamentos. Por exemplo, a imagem de um bilionário como Elon Musk não é apenas a representação de um indivíduo, mas um simulacro que encarna valores como inovação, sucesso e poder. Essa imagem, repetida incessantemente nas mídias, torna-se mais real do que o próprio Musk, influenciando como as pessoas veem não apenas ele, mas também o sucesso, a riqueza e o mérito.

Milícias gourmet

O último passo será, após a extinção de todos os serviços públicos, o fim também da segurança pública e política real de Estado. Em vez de um exército estatal, haverá a ascensão de forças militares e milícias privatizadas, compostas por mercenários pagos pelos bilionários. Essas forças serão usadas para proteger os interesses econômicos globais da elite, enquanto conflitos sociais internos serão tratados como ameaças à liberdade individual dos ricos. A violência será justificada como uma forma de proteger o livre mercado e a “ordem natural” das coisas. Se tal passo pode parecer desarrazoado, custa lembrar que Putin, outro líder populista e apoiador inesperado de Trump, já usa dessa estratégia de terceirização do exército, por meio da contratação de mercenários, como os da milícia Wagner (um nome sugestivo com a alusão ao poeta que era adorado por Hitler), na guerra contra a Ucrânia.

Alexandr Duguin, filósofo russo tido como o guru de Putin, embora não defenda explicitamente o militarismo privatizado, em suas ideias sobre a fragmentação do poder global e o declínio do Estado-nação tradicional, elabora como que uma teoria política que está por vir, deve dar conta de um cenário onde atores não estatais (como corporações ou milícias) ganham mais influência. Em seu livro A quarta teoria política, ele defende um multipolarismo imperialista, onde várias civilizações e potências regionais competem pelo poder. Nesse contexto, é possível imaginar que forças militares privadas ou semiprivadas possam surgir não apenas como atores importantes, mas facções determinantes, ainda quando invisíveis, em regiões onde o Estado é fraco ou falido.

Arbeit macht frei

O que estamos testemunhando é a emergência de uma nova forma de totalitarismo, que se apropria da linguagem da liberdade para justificar a dominação. Assim como a frase escrita no portão de entrada do campo de concentração de Auschwitz I, na Polônia, “Arbeit macht frei” (O trabalho liberta), o culto ao trabalho e à democratização da fortuna é só um ardil para a cooptação do alienado. Esse projeto não é apenas uma ameaça teórica; ele já está em andamento, moldando as estruturas econômicas, políticas e culturais de nossa sociedade. A fusão entre o autoritarismo racial do nazismo e o individualismo extremo do libertarianismo é uma distopia encarnada onde a liberdade é redefinida como ativo, a desigualdade é celebrada como graça e a humanidade é dividida entre uma elite “melhorada” e uma massa descartável.

 

Bräulio Rodrigues é doutor em Direito pela Universidade Federal do Pará e pesquisador de teoria política. Artigo transcrito do Le Monde-Diplomatique-Brasil

Adicionar aos favoritos o Link permanente.