Roteiro de ‘Ainda estou aqui’ extrapola cinema e estimula reflexão sobre história, ditadura e verdade

Cristina Fonseca, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

A cerimônia do Oscar, marcada para o próximo dia 2 de março, certamente será a mais aguardada da história. Pelo menos para o cinema brasileiro. O filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles – que conta a história da família do deputado Rubens Paiva, sequestrado e morto pela ditadura durante os anos de chumbo, pela ótica de sua viúva Eunice Paiva – recebeu inéditas três indicações este ano: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz, com Fernanda Torres. Por causa disso, foram inúmeras nos últimos dias as sugestões de contribuições sobre o filme feitas por acadêmicos de diversas áreas das Ciências Humanas para o The Conversation Brasil. Textos que procuram explicar as causas do sucesso. Seja sob o ponto de vista da técnica cinematográfica, da riqueza do roteiro, da qualidade das interpretações ou da importância histórica e sociológica de uma obra que coloca o dedo, com cirúrgica delicadeza, nas feridas da ditadura civil-militar que o Brasil viveu entre 1964 e 1985. No artigo abaixo, a documentarista e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP Cristina Fonseca escreve sobre o poder do roteiro, que ajudou a transformar uma história aparentemente intimista num marco da luta pela verdade sobre os crimes cometidos pela ditadura.


O japonês Akira Kurosawa, um dos maiores diretores de cinema da história, afirmava que “com um bom roteiro, um grande diretor pode fazer um excelente filme, um diretor medíocre pode fazer um filme razoável, mas, com um mau roteiro, mesmo um grande diretor não consegue fazer nada.”

O diretor de teatro brasileiro Antunes Filho, este um dos fundadores do moderno teatro brasileiro, dizia que o Brasil era um país de grandes atores, homens e mulheres. Foi Ziembinski que despontou a mítica e inigualável Cacilda Becker, uma das maiores atrizes brasileiras e mundiais de todos os tempos.

Cacilda revolucionou a atuação. Com sua forma de atuar e representações em que a fala é mais natural, modificaria inclusive a dicção dos atores do teatro clássico. Outros grandes nomes seguiriam o caminho de Cacilda, como a própria Fernanda Montenegro, Marília Pera, Glauce Rocha e tantas outras estrelas entre as estrelas e mitos gigantesco de nossa atuação, trazendo veracidade às afirmações de Ziembinski.

Mas voltemos a Kurosawa e ao filme em evidência no país e no mundo, ‘Ainda Estou aqui’ de Walter Salles, que está com três indicações ao Oscar 2025, num recorde histórico para o cinema brasileiro.

Confesso que fui assistir ao longa metragem assim que estreou, mas com medo de não gostar, dada as nossas dificuldades para filmes históricos e abordar tema tão espinhoso e traumático quanto o da ditadura. Depois também porque o cinema político brasileiro já tem grandes realizações, quase imbatíveis como “Terra em Transe” (1964) de Glauber Rocha; “Os Fuzis” (1964), de Ruy Guerra, ou ainda, para pensarmos na Vanguarda radical, o espetacular “Hitler Terceiro Mundo” (1968), de José Agripino de Paula.

O único país da América Latina que não julgou os crimes do golpe militar do período foi o Brasil, e isso faz parecer para as novas gerações que as monstruosidades ocorridas no período e que o terror implantado com o AI-5 são exageros que devem ser esquecidos.

E por que os culpados nunca foram julgados, tivemos que engolir a volta tenebrosa de suas viúvas: os infames generais de segundo escalão renascidos de 1964, que se submeteram até a um capitão desqualificado para alcançar o antigo sonho de poder.

A presidência militar, e o autoritarismo dela decorrente, vêm desde a República da Espada (1889-1894). Logo depois, os militares tentaram novamente ganhar a presidência na Guerra de Canudos (1896-1897), no sertão da Bahia. Em seu delírio, o general Moreira César achou que voltaria vitorioso para o Rio de Janeiro carregando a cabeça de Antônio Conselheiro espetada na espada, e assim assumiria a faixa presidencial.

Mas seu sonho deu em fracasso, pois ao atravessar o Rio Vaza Barris, com seu uniforme branco de galã, e subir intrépido uma rua da Velha Cidade de Canudos, levou um tiro certeiro. Dizem que de um velho mandingueiro que empossava seu trabuco rustico e ainda exclamou surpreso ao avistar o General: “Ôxe!! Esse quer morrer!”

Com as perdas dos fracassos do passado e o volumoso gasto dessas batalhas, os militares tiveram que adiar seus sonhos de poder até o Golpe de 1964 e o terrível período que se seguiu – como narra o filme de Walter Salles.

Falar da ditadura militar de 1964, atacar a tortura instituída e o sumiço de presos políticos que nunca foram justiçados com a prisão de seus algozes nunca é demais. Mas fazê-lo sem cair no panfletário ou na politicagem tacanha é delicado e difícil. Walter Salles contornou esses riscos com muita elegância.

Roteiro sofisticado e grandes atuações

Voltando a Kurosawa e sua visão sobre a importância do roteiro numa produção cinematográfica, Walter Salles soube pegar o best-seller de Marcelo Rubens Paiva sobre sua mãe e família e transformar num filme enxuto, direto e, principalmente, refinado.

Ao invés de centrar-se na figura da vítima perseguida, o deputado cassado Rubens Paiva, o que seria aparentemente mais fácil, apesar de arriscado, manteve o foco da ação, assim como o livro em questão, na mãe de família Eunice.

Uma mulher que, depois da brutal perda do marido, ainda sofre ameaças ao ser mantida presa em sua própria casa com seus filhos, vigiada por capangas da repressão. Depois foi arrastada, ela própria e uma de suas filhas, à prisão, e mantidas presas numa solitária por um mês para prestar depoimentos.

É a história dessa mulher de fibra, que tem que se reinventar em todos os aspectos de sua vida; como mudar de cidade, deixar para trás a vida burguesa de dona de casa feliz e segura, criar cinco filhos sozinha e inventar uma profissão aos 48 anos de idade, que tem encantado o público do mundo todo.

Um texto bem feito, ágil e contundente, que possibilitou o resplandecer dessa atriz imensa, Fernanda Torres, que pode se revelar em sua plenitude. Ela entra para o hall das nossas maiores atrizes brasileiras, ao lado inclusive de sua própria mãe, Fernanda Montenegro, que surge brilhantemente no final do filme, atestando o que digo. Grande façanha do diretor.

Fernanda Torres tem luz própria, não é uma mera cópia de sua mãe e isso não é pouco. Em uma atuação realmente genial, soube aproveitar as dicas que Fernanda Montenegro lhe deu, que diante de um grande sofrimento a heroína trágica não chora, e no melhor de suas expressões contidas esboçou uma semi lágrima num só momento da trama.

A dimensão de seu trabalho de interpretação ganha cada vez mais força na medida em que a história avança, e ali Fernanda Torres se revela por inteiro. Walter Salles, com esse filme sem aparente grande pretensão, deixou-se dar um salto qualitativo dentro de seu próprio histórico de cineasta. Conseguiu realizar um filme de época com uma reconstrução perfeita numa narrativa que emociona multidões e lembra em muitos aspectos o melhor do neorrealismo italiano.

Sua mão certeira fez revelar ainda o grande ator Selton Mello, que com muito pouco recurso para se apoiar construiu um pai semelhante até no sorriso ao verdadeiro, numa outra brilhante atuação.

Diante de um tema requentado como o golpe militar na América Latina, onde só a Argentina tem produzido uma quantidade de filmes sobre essa história há anos, Salles conseguiu ainda assim mostrar algo diferente, comprovando o que todos deveríamos saber: não é o tema que faz a arte, mas a arte que faz o tema.

Fui no cinema para ver uma pequena obra e me vi surpreendida com um grande filme de ator. Sim, a grandeza deste filme não está na forma inovadora, nem na singularidade que o cinema pode atingir com um grande diretor, mas está centrado na atuação minimalista ao abordar o personagem solitário que tem de se manter vivo diante de tantas vicissitudes. Enfim, uma abordagem universal, que lembra o melhor de Robert Bresson e pode agradar toda gente em todas as idades.

O tema da casa tomada e da infelicidade dos que restam poderia ter ocorrido nas antigas catacumbas e na perseguição de cristãos pelo Império Romano, lembra a caça aos judeus efetuada por Hitler e os soldados nazistas. E também o que mostra o filme: a prisão arbitrária e a tortura impingida aos comunistas pelo golpe militar brasileiro e em toda América Latina. E isto é cinema.

Estamos diante de um filme que pode ajudar as novas gerações brasileiras a se reencontrarem com sua própria história para compreender que ditaduras não podem mais ocorrer. Um filme que pede justiça contra os infames. E isto é cinema.

Cristina Fonseca, Documentarista, diretora e roteirista, escritora, ensaísta e doutora em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

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