O prato sem o IPCA (por Gustavo Krause)

“Ninguém come PIB, come alimentos”, esta é uma das muitas frases marcantes da economista Maria Da Conceição Tavares (1930-2024) que  enfrentou bravamente, goste-se ou não, a gestão ortodoxa no combate à inflação e no manejo das políticas econômicas.

A longeva e destemida professora injetava doses de sentimentos e emoções à argumentação técnica a tal ponto que foi às lagrimas por ocasião do lançamento Plano Cruzado e, mais tarde, lamentou: “Acompanhei o plano todo, até que capotou de maneira estrondosa. Todas as experiências foram muito amargas. Foram feitas mais de cinco tentativas de atacar a hiperinflação. E não deu. Só deu mais tarde. Estava comovida. Pela primeira vez se fazia um plano anti-inflacionário que não prejudicava o trabalhador. Isso é comovedor, todos os outros, como este agora também, provocaram recessão, desemprego e queda de salários” (Entrevista na edição de O Globo em 01/07/2015).

De fato, a inflação é uma doença desafiadora e, não poucas vezes, devastadora que se espalha no organismo das sociedades destruindo democracias, ampliando a miséria social, corrompendo valores éticos e gerando a cultura cínica da esperteza. O mais grave: não tem cura. Empobrece os mais pobres, gera fortunas para os mais ricos e fortalece a assimetria do poder político capturado por uma minoria privilegiada.

A afirmação de que a inflação é uma enfermidade incurável não é exagero. Ela pode ser enfrentada por vários instrumentos de controle, mas não se dá por vencida. Qualquer descuido equivale a uma baixa imunidade diante dos malefícios de uma bactéria oportunista.

Trata-se, pois, de um fenômeno extremamente complexo do qual se ocuparam e se ocupam notáveis estudiosos das ciências econômicas. Não há bala de prata para uma questão que envolve, além das múltiplas variáveis econômicas, a fluidez das expectativas sociais e os rumos incertos do poder político.

No caso brasileiro, nossa experiência histórica padeceu de uma longa e prejudicial convivência com a inflação. Lembro, nos idos dos anos cinquenta, a linguagem popular denominá-la de carestia para definir a alta do custo de vida, mas logo compreendi, que refletia, também, pobreza, desnutrição, fome.

As feiras livres e os mercados eram o termômetro adequado para dar forma e ênfase ao dinheiro curto e ao balaio mais vazio; o salário minguado para o mês longo. Entrava e saia governo e a carestia persistia. Em sete décadas, recebeu um nome mais erudito: inflação que só crescia até se tornar um dragão voraz que sugava o país de dimensões continentais cada vez mais distante do idealizado “país do futuro”.

Irmãs gêmeas da desigualdade social, inflação e pobreza desafiaram governos autocráticos e democráticos. A democracia foi restaurada apesar dos riscos e ameaças concretas; a inflação garroteada, mas viva; e o país monoexportador de café produziu um PIB que, atualmente, entre as dez maiores economias do mundo. Porém, terrivelmente, desigual.

É aí que ganha destaque frase de Maria da Conceição Tavares: “o povo não come PIB. Come alimentos”. Ora, a expressão tem um significado real. A inflação que hoje é medida sistemática e cientificamente por vários índices de preços, expressos em diversas sopinhas de letras: IPCA, INPC, IGP-M, IGP-DI, IPC-FIPE, sendo o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) o índice oficial do país, calculado pelo IBGE, referente às famílias com rendimentos de 1 a 40 salários mínimos em dez regiões metropolitanas e mais as cidades de Goiânia, Campo Grande, Rio Branco, São Luís, Aracaju e Brasília.

O povo aprendeu e sente no estômago que a inflação atinge, mais fortemente, o orçamento dos mais pobres, em especial, os produtos alimentícios e o grupo de alimentação e bebida com altas de 7,69% o que representou um peso de 1,63% sobre a alta do IPCA de 4,83% (Fonte: IBGE).

Lembrei, imediatamente, de um amigo que tem dois restaurantes em bairros populares da Região Metropolitana do Recife. É trabalhador, criativo e, como pequeno empresário, conseguiu superar todas as dificuldades do ambiente de negócios. Ele serve comida caseira durante a semana; saborosos pratos regionais no fim de semana ; e inventou um cardápio promocional diário: “O prato sem IPCA”.

Velho cliente da dobradinha e da rabada, questionei: “Joca, quem sabe o que é IPCA? – Amigo, disse ele, todo mundo pergunta e eu explico. É uma eficaz propaganda. E o preço? Baixei. Com o número redondo de 5%. Retruquei, intrigado: e com a matéria-prima mais cara? Aí ele meu deu uma aula sobre IPCA. – GK, 30 itens subiram e outros 30 caíram. Compro mercadorias substitutas. E ofereço, gratuitamente, um suco de maracujá (caiu 13%) ou de Melancia (caiu 11%), variando o sabor de acordo com a fruta da época. Aí o freguês fica satisfeito e passa a saber que comeu um pequeno pedaço do PIB.

Até porque, feijão, arroz, laranja, café, trigo, soja etc…não atendem ordens dos governos: seguem obedecendo à lei pétrea da oferta e da procura.

 

Gustavo Krause foi ministro da Fazenda 

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