Jazz e o golpe no Congo

Louis Armstrong desembarcou em Leopoldvillle, (atual Kinshasa), capital do Congo, em 28 de outubro de 1960. Um show para os EUA usarem o softpower e se aproximarem do país que comemorava sua independência recente da Bélgica? Não foi bem assim. Armstrong era usado – e sabia – pela CIA para derrubar o governo do primeiro-ministro Patrice Lumumba. Não era apenas um concerto de jazz. Era o início do réquiem neocolonialista.

Quem conta essa história é o documentário Trilha Sonora para um Golpe de Estado, do diretor belga Johan Grimonprez. A obra é uma sucessão frenética de informações sobre a deposição e o assassinato de Patrice Lumumba, eleito após as primeiras eleições livres no país. A trilha sonora impecável é uma das protagonistas e casa com uma linguagem afiada. Entre os músicos estão John Coltrane, Max Roach, Abbey Lincoln, Nina Simone, Thelonious Monk, Dizzy Gillespie, Louis Armstrong, Mirian Makeba, L’African Jazz e Grand Kalee. Há playlists com todas as canções disponíveis no Spotify.

Patrice Lumumba foi fundador do Movimento Nacional Congolês e principal liderança do movimento popular que culminou no fim da dominação colonial belga, que perdurou de 1908 até 1960. Em janeiro de 1960, houve uma conferência da independência em Bruxelas, mas o MNC se recusou a participar sem Lumumba, preso por organizar um ato político no ano anterior.

Pressionado, o governo belga foi obrigado a libertá-lo e enviá-lo ao encontro. Foram marcadas eleições livres em maio de 1960 e a data para a independência, em 30 de junho daquele ano. O partido venceu as eleições e Lumumba foi eleito primeiro-ministro. Uma nova era começa ao som de da rumba Independence Cha-Cha  de Le Grand Kallé e seu grupo L’African Jazz.

Esse tempo de esperança e liberdade durou cerca de três meses. Entre os diversos conflitos internos no período, a rica província de Catanga, comandado pelo rival político Moïse Tshombe, se declarou independente, com o apoio de empresas de exploração de minas e do governo belga. E ainda o presidente Kasa-Vubu que tentou dissolver o governo e derrubar Lumuba.

Todas essas crises tinham a Guerra Fria como pano de fundo. Europa e EUA queriam manter seus lucros na exploração de recursos naturais e a URSS tentava aumentar sua influência no continente. O fim do colonialismo foi uma oportunidade para a então URSS se aproximar dos novos governos africanos. Americanos e europeus tentavam impor presidentes-fantoches e boicotavam governos populares. A URSS oferecia apoio militar, suprimentos e força política, como os icônicos discursos do primeiro secretário Nikita Khrushchev na ONU defendendo a soberania dessas nações. O documentário mostra um saboroso momento histórico: o encontro de Khrushchev com Fidel Castro em um hotel no Harlem, recebido por Malcolm X.

Em entrevista ao Estadão o diretor surpreende: “cresci na Bélgica e nunca aprendi sobre isso na escola. O assassinato de Patrice Lumumba é um evento que ainda hoje é distorcido, com ele sendo rotulado como comunista. Os belgas fizeram isso para conquistar o apoio dos Estados Unidos. No filme, ao ser perguntado se era comunista, Lumumba responde: “Sou africano, antes de tudo. Meu país deve decidir seu próprio destino.”

Grimonprez usa o filme para tratar do trauma coletivo e das relações desiguais entre o Norte Global e o Sul Global. “O assassinato de Lumumba representa um modelo de apropriação neocolonial que ainda é usado hoje. O Banco Mundial, por exemplo, tem um papel crucial nesse esquema de exploração do Sul Global. Esse é o mesmo padrão, apenas adaptado aos tempos atuais”

Ao falar de órgãos internacionais, o filme relata a participação do sueco Dag Hammarskjöld, então secretário-geral da ONU, no golpe de estado congolês. Ao enviar as tropas de paz da ONU para Catanga, cerca de 20 mil homens, ele legitimou o governo separatista e garantiu os lucros belgas. Aliás, esse envio de soldados foi inédito, a primeira das missões que a entidade realiza até hoje. Segundo o documentário, após um pedido dos EUA Hammarskjöld não permitiu que Lumumba discursasse na ONU para defender a soberania de seu país e denunciar os belgas.

As heranças coloniais nos cercam. Semana passada entrevistamos Viviana Santiago, diretora da Oxfam sobre a relação entre o tema das desigualdades entre Norte e Sul Global. No bate-papo, falamos sobre colonialidade, concentração de renda, entidades internacionais que favorecem o Norte e as ações de empresas para desestabilizar o país, como na ação judicial que o Congo está movendo contra a Apple. Afirmo sem medo de errar: se estivéssemos em 1960, a corporação fundada por Steve Jobs seria cúmplice do assassinato de Patrice Lumumba. Sempre que possível, fujo de sentenças definitivas, mas abro uma exceção para assegurar: Trilha Sonora de um Golpe de Estado é um filme obrigatório.

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