Alguns riscos da certeza (por Eduardo Fernandez Silva)

Um dos fundamentos da polarização política é a certeza: “meu lado” está certo e o seu, errado! Essa divisão política ameaça a sobrevivência de milhões e indica que é melhor ter dúvidas.

Freud disse “nunca tenha certeza de nada, porque a sabedoria começa com a dúvida”. Nem sempre Freud acertou, como qualquer outra pessoa. Mas, como muitos já exploraram, é da dúvida que avança o conhecimento. A certeza é arrogante e traiçoeira, pois a convicção imaginada sólida com frequência se revela falsa. A dúvida, por sua vez, gera humildade e reflexão; humildade para ouvir e ponderar a opinião oposta; reflexão que gera conhecimento.

O recente filme “Conclave” retrata o processo de escolha de um novo Papa. Com enredo fictício, explora as tramas bem reais de todas as disputas de poder. Num dos muitos diálogos memoráveis, um dos cardeais diz “nenhum homem sadio iria querer o papado”, ao que seu interlocutor responde “os homens mais perigosos são os que sim querem ser Papa”. Noutro diálogo, após ouvir que não será possível escolher alguém imaculado, diz o cardeal que organiza o conclave: “Há um pecado que temo acima de todos os outros: a certeza! Se existisse apenas a certeza, e nenhuma dúvida, não haveria mistério. E, pois, nenhuma necessidade de fé”. E, podemos concluir nós, nenhuma necessidade de qualquer igreja!

Diálogos ou frases de profunda reflexão seguem: “A certeza é a grande inimiga da unidade”; “A certeza é inimiga mortal da tolerância”; “Mesmo Cristo não tinha certezas ao final”!

Trump tem certezas, assim como muitos de seus apoiadores e opositores. Na onda de polarização criada por pessoas que compartilham certezas opostas, comungando do mesmo e perigoso pecado, a construção de um caminho alternativo torna-se difícil. Continuamos, então, na trilha suicida em que nossos convictos governantes nos conduzem.

Muitos economistas, felizmente não todos, também têm certezas que se revelam insustentáveis quando confrontadas com a realidade: por exemplo, a ideia de que o crescimento do PIB trará melhores condições de vida à população! A história é outra fonte de certezas passageiras. Cabral descobriu o Brasil? A Amazônia era um deserto de gente quando os europeus aqui chegaram? Como manter essas crenças, que servem a propósitos imperiais, diante de tantas evidências em contrário?

Novas tecnologias demonstram que grande parte da Amazônia era ocupada por centros urbanos que abrigavam dezenas de milhares de pessoas há mais de mil ou dois mil anos. Alguns destes são Kuhikugu, no alto Xingu, Llanos de Mojos, no sudoeste da Amazônia boliviana e, no vale Upano do Ecuador, “vestígios de uma metrópole ajardinada com mais de 6.000 plataformas de terra em padrão geométrico, conectadas por praças públicas e um conjunto de estradas ligando 15 centros urbanos separados”.

E as nossas metrópoles violentas, fedorentas e calorentas, num contexto de aquecimento global, serão mesmo evidências da superioridade do nosso sistema econômico e político? A certeza cega e polariza; a dúvida ilumina e aproxima!

 

Eduardo Fernandez Silva. Ex-Diretor da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados

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