Quem é o casal que escravizou mulher por 30 anos e pagará 4 mínimos

São Paulo — Condenados ao pagamento de quatro salários mínimos por manterem uma mulher em condição análoga à escravidão por 30 anos, José Enildo Alves de Oliveira, de 60 anos, e Maria Sidronia Chaves de Oliveira, 58, são donos de uma loja de tecidos no Brás, região central de São Paulo conhecida pelo comércio de mercadorias populares. A vítima era explorada no estabelecimento e na casa do casal.

Eles foram condenados a dois anos de prisão em regime aberto e multa no valor de R$ 506 para cada um. A pena de reclusão, contudo, pode ser substituída pela prestação de serviços à comunidade e pelo pagamento de dois salários mínimos para cada, totalizando R$ 6.072, a uma entidade beneficente. Com isso, o casal deve desembolsar, ao todo, R$ 7.084.

A decisão foi proferida pelos desembargadores André Nekatschalow e Mauricio Kato, Ali Mazloum e pela juíza Luciana Ortiz, da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª região (TRF-3).

Em primeiro grau, a juíza Paula Mantovani Avelino tinha absolvido o casal, em agosto do ano passado. O Ministério Público Federal (MPF) recorreu, levando o julgamento para o TRF-3.

Quem é o casal

De acordo com o depoimento de Maria Sidronia à polícia, colhido em julho de 2022, o casal reside em imóvel próprio e tem a loja há cerca de 13 anos. Eles trabalham juntos, em horário comercial, e mantinham, além da mulher escravizada, uma faxineira que fazia a limpeza da casa de duas a três vezes por semana, pelo valor de R$ 150 a diária.

O casal possui dois filhos, sendo que um deles mora em Manaus (AM) desde que os pais abriram a loja. Os netos costumam passar as férias na casa dos avós, muitas vezes sob os cuidados da vítima escravizada, até ela ser resgatada e levada a um abrigo em julho de 2022. A mulher também teria cuidado dos filhos do casal quando eles eram pequenos.

O combinado com a vítima seria olhar as pessoas que estavam na casa trabalhando. Em troca, ela poderia ter um quarto próprio, com banheiro e alimentação, diz trecho do depoimento.

A mulher afirmou que a vítima poderia sair aos finais de semana, “pois tinha a chave da casa”. No entanto, admitiu que nunca pagou salário à funcionária, que “por ser muito simples, jamais pediu algo como aparelho celular ou viagem”.

Maria Sidronia disse ainda que, quando recebeu a visita da procuradora do Trabalho e do auditor do Trabalho, percebeu que a vítima “lhe ajudou a vida toda e, se tivesse condições, daria uma casa para ela”.

A doação de um imóvel para a mulher estava prevista em um acordo firmado através de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), feito pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), em 2014. O acordo, no entanto, nunca foi cumprido.

Ainda em depoimento, Maria disse que “sempre teve um grande amor” pela empregada doméstica. Ainda assim, disse desconhecer parentes da mulher.

Em seu depoimento, José Enildo afirmou que considera a vítima “parte da família” e que, quando resgataram a mulher, “pensava em ajudar”. Ele disse, ainda, que “contrataram” a mulher por motivos de segurança, pois, com alguém cuidando da casa, seria possível prevenir furtos e roubos.

O homem afirmou também que a empregada “tinha acesso aos alimentos da casa, sendo que a comida era feita para todos” e que ela “jamais cuidou de crianças” – afirmação que contraria o relato dado pela vítima e por sua esposa.

José Enildo disse que, em 2014, após as denúncias do caso, chegou a oferecer a casa de praia para a vítima “descansar, para morar, pois não precisava mais dos serviços” dela. Segundo ele, o casal gostaria que a empregada “seguisse a vida em diante”. No entanto, a mulher teria recusado o imóvel, dizendo que gostaria de ir morar com familiares no interior do estado.

Ainda em depoimento, ele afirmou que trabalha com a compra e venda de tecidos, tendo renda média de cerca de R$ 3 mil. No Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o casal acumula ações de dívidas ativas. A mulher tem ainda uma ação por dívida de IPTU em Pernambuco.

No processo, eles procuraram inicialmente a Defensoria Pública da União (DPU) para fazer a defesa, e declararam hipossuficiência para não arcar com os custos do processo.

O Metrópoles não localizou os atuais advogados do casal.

O que a vítima disse

Em depoimento prestado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a empregada afirmou que residia em um abrigo ligado à Pastoral do Migrante sediada no Glicério, região central de São Paulo, por volta de outubro de 1991, quando Maria Sidronia a procurou “em busca de uma trabalhadora doméstica, que cuidaria das crianças e outra trabalhadora que faria os serviços gerais, ficando combinado o pagamento de um salário mínimo mensal pela prestação do serviço”.

A vítima de escravização relatou ter recebido o primeiro salário normalmente, mas lembra que no segundo mês a máquina de lavar roupas quebrou durante o uso e a patroa atribuiu a culpa à empregada. “A patroa ficou muito brava e disse que não pagaria os salários seguintes para cobrir o conserto da máquina de lavar”, disse.

Ela lembrou também que, em setembro de 2001, foi chamada para trabalhar em uma loja de Maria durante o dia, e na casa do casal à noite. Conforme o depoimento, a outra funcionária recebia salário, mas ela não. “Quando precisava de alguma bolacha pedia da patroa que lhe dava, quando queria um cigarro pedia da patroa que lhe dava”, relatou.

A vítima também era incumbida de cobrar cheques sem fundos dados pelos clientes. Segundo o relato da mulher, os patrões lhe diziam que ela não podia retornar sem o dinheiro. No começo dos anos 2000, ela teria passado uma semana em Goiânia (GO) fazendo as cobranças. Disse que nunca foi agredida nas cobranças que fez, mas tinha medo, e que também nunca tirou férias.


30 anos de escravidão

  • De acordo com a sentença, entre outubro de 1991 e 29 de julho de 2022, José Enildo e Maria Sidronia reduziram a mulher à condição análoga à de escravo, “sujeitando-a a trabalhos forçados, à jornada exaustiva e a condições degradantes de trabalho e moradia”.
  • No início da década de 1990, Maria Sidronia teria encontrado a mulher em um abrigo e a levado para trabalhar em sua casa como empregada doméstica.
  • No entanto, a vítima nunca teve registro em carteira e morava em uma edícula nos fundos da residência. Mesmo trabalhando na casa e na loja do casal, entre às 7h e 22h, ela não recebia salários.
  • A vítima disse em depoimento que Enildo a xingava com frequência, chamando-a de “filha da puta”, “macaca”, “nega do caralho”. Os xingamentos, segundo a mulher, eram motivados por coisas simples, como demora para abrir um portão.
  • Ela disse ainda que Maria Sidronia tinha o hábito de filmá-la quando algo não estava do seu agrado, ironizando o trabalho da mulher. Era comum que ela fosse irônica, dizendo expressões como “olha, Xuxa dando o show dela”.
  • A vítima afirmou também sofrer torturas psicológicas por parte da patroa, além de agressões físicas – tanto do homem, quanto da mulher. Em um episódio, ela foi trancada na lavanderia e ficou gritando, pedindo para sair. Quando o casal entrou no cômodo, agrediu a empregada com “muitos tapas”.
  • Em um surto de fúria, Maria Sidronia chegou a lançar uma cadeira na vítima. Segundo a mulher, essas agressões só ocorriam quando ela estava sozinha com os patrões.
  • A vítima relatou que não era impedida de sair, “mas não saía porque não conhecia ninguém e não tinha dinheiro”.
  • Ainda em depoimento, a mulher contou precisar trabalhar mesmo com uma lesão grave na perna, que ela acreditava ser uma úlcera.
  • A vítima chegou a ser ameaçada de expulsão, em 2017, caso fizesse alguma denúncia sobre a situação em que se encontrava.
  • Ela também não tinha qualquer documento de identificação, o que é característico das vítimas desse tipo de crime.
  • Segundo um auditor fiscal do Trabalho que acompanhou a vistoria judicial na residência em 2022, a mulher estava em “prisão emocional”. “Ela tinha a chave da corrente, mas não sabia como usar”, disse.

 

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