Nem nós… nem eles (por Felipe Sampaio)

Chamou a atenção o otimismo que o editorial do Estadão manifestava com os destinos da política (em plena segunda-feira de carnaval), motivado por um eventual encolhimento eleitoral que parece acometer simultaneamente o presidente Lula e o ex-presidente Bolsonaro. O editor demonstrava esperança em alguma alternativa que poderia surgir a partir da derrocada dos dois polos que se estabeleceram na política brasileira na última década.

Sendo bem franco, o argumento nem chegava a ser animador. Na verdade, eu havia escutado a mesma tese alguns dias antes em uma conversa com um jovem empresário no Rio de Janeiro que expressou uma ideia semelhante à do jornal paulistano. Segundo ele, sem Lula e Bolsonaro no páreo, novos líderes teriam espaço para emergir (essa insistente aposta no líder ideal – ou seria no liderado ideal…).

Por sua vez, o Estadão foi em frente, referindo-se a Lula e Bolsonaro como “quem fez carreira dividindo o País entre nós e eles”, e deixando escapar certa torcida em relação ao futuro, “desde que seus eventuais herdeiros não sejam a continuidade do atraso”. Um argumento com gostinho de déjà vu, requentando a crença de que todo líder pra valer tem herdeiros e heranças – seja nas autocracias, seja na Faria Lima.

É inegável que Lula e Bolsonaro têm uma tendência eleitoral desafiadora pela frente. Contudo, o mais importante por trás dessas oscilações de popularidade é identificar se tanto “nós” como “eles” ainda somos os mesmos que definiam a política interna (e a geopolítica global) na segunda metade do século XX.

Acontece que, no momento político atual, não basta mais apenas definir quem somos nós e quem são eles, que até pouco tempo abrangiam as duas tribos mais amplas da esquerda e da direita históricas. Aqueles dois campos que, em linhas gerais, marcavam a fronteira entre as principais visões socioeconômicas da era industrial moderna: o socialismo e o capitalismo.

Agora, enquanto lideranças icônicas parecem representar um número cada vez menor de “nós” e de “eles”, cresce uma nova identidade – ainda difusa – que, por enquanto, não conseguimos distinguir se são “novos nós” ou “outros eles”. Uma mistura de percepções de esquerda com valores de direita que, na falta de representantes e de conceitos consistentes, aglutinam-se em torno de anarcopersonagens como Trump, Musk, Milei e Marçal, que aproveitam o caos para passarem suas boiadas.

Em meio à indefinição – típica de períodos de transição – as nações dominantes correm para se armar, porque a verdade humana mais frequente ainda é a guerra. Em nome dos pobres e da paz, ambos sãos os primeiros sacrificados em tempos de incerteza.

Não foi à toa que as pesquisadoras Nilma Gulrajani e Jessica Pudussery (The Guardian, 25/01/25) alertaram que “há motivos para acreditar que atingimos o pico da ajuda”. Segundo o artigo, o déficit orçamentário, as migrações, a guerra da Ucrânia, o preço da energia e dos alimentos e a tensão geopolítica fizeram com que “só em 2024, oito países ricos tenham anunciado US$ 17,2 bilhões em cortes na assistência oficial para o desenvolvimento e três outros cogitam reduções”, isso sem contar ainda com os cortes bilionários anunciados pelo presidente Trump nos recursos para a OMS, USAID, Banco Mundial e outros.

Nesse cenário, problemas estruturais, como a desigualdade social, as mudanças climáticas e seus efeitos colaterais, ficam em segundo plano, dando a vez para pautas fragmentadas, falácia patriótica, discursos de ódio e ilusionismo digital – que não estão no radar nem de “nós” nem de “eles”.

 

Felipe Sampaio: cofundador do Centro Soberania e Clima; atuou em grandes empresas e no terceiro setor; chefiou a assessoria especial do ministro d Defesa; dirigiu o sistema de estatísticas no ministério da Justiça (SINESP); foi secretário-executivo de Segurança Urbana do Recife; é chefe de gabinete da secretaria-executiva no Ministério do Empreendedorismo.

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