Argentinos prestam homenagem ao papa na maior favela de Buenos Aires

Sebastián Morales tinha 20 anos quando conheceu Mario Jorge Bergoglio, um sacerdote que andava entre os fiéis como nenhum outro costumava fazer. O jovem morava na rua e era viciado em drogas, até que Bergoglio prestou atenção em Sebastián como ninguém tinha feito antes.

“Eu estava mal, destruído por dentro e por fora. Vivia nas drogas, no álcool. Ele vinha aqui, bebia chimarrão comigo e tinha sempre uma palavra de alento. Dizia que ninguém se salva sozinho e me benzia. Por isso, aos poucos, eu me aproximei da igreja e dos padres das favelas. Hoje, tenho 37 anos e continuo a regar aquela semente”, descreve à RFI, enquanto entrega santinhos em homenagem ao “papa dos pobres”.

Sebastián mora no Lar de Cristo, na favela 21, um abrigo criado por Bergoglio quando era arcebispo de Buenos Aires.

“O legado que ele nos deixa é que temos de amar o outro, de abraçar quem está dolorido, quem está ferido por dentro, que é preciso gerar esperança e ter fé porque ninguém se salva sozinho. Ele foi padre do povo, padre dos pobres. Ele não se esqueceu dos marginalizados, nem dos doentes, nem dos aposentados. E ainda mudou a ideologia da Igreja, abrindo as mentes das pessoas”, avalia Sebastián.

Papa dos pobres

Na entrada da Favela 21, a paróquia Nossa Senhora de Caacupé é ponto de referência para o maior e mais populoso bairro popular da cidade de Buenos Aires, com cerca de 100 mil pessoas, a imensa maioria delas imigrantes paraguaios e descendentes.

Nossa Senhora de Caacupé é a padroeira do Paraguai, cuja maior diáspora no mundo fica na Argentina. O próprio papa visitou a localidade de Caacupé, no Paraguai, durante a sua visita ao país em 2015.

Néstor Uriel, de 18 anos, assíduo da paróquia, está inconsolável. “Depois que saiu da UTI, tínhamos a esperança de que ele melhorasse definitivamente. Essa sensação aumentou depois que ele apareceu na missa de Páscoa. Mas Deus sabe o que faz. Os santos entre os mortais têm sempre um papel divino a ser exercido próximo de Deus”, acredita Néstor, quem tinha pedido a Francisco que o ajudasse a ser aprovado na universidade para o curso de Ciências Políticas.

“O pedido foi atendido. O meu agradecimento ao nosso querido papa Francisco que nos transmitia essa santidade”, com os seus gestos e ensinamentos, diz Néstor.

“A dor da perda é enorme, mas também nos fortalece. Agora temos essa missão de representar o seu legado e isso nos ajuda a superar esta dor. Estamos aprendendo algo novo e devemos pôr em prática os ensinamentos dele”, diz o padre Lorenzo de Vedia, em frente ao altar da paróquia à qual pertence há 25 anos.

Padre das Favelas

O “padre Toto”, como Lorenzo é popularmente chamado, é conhecido por ser amigo do papa e representante do chamado “Padres das Favelas”, o segmento religioso que ocupava um lugar de destaque no coração de Francisco.

“Padres das Favelas” (Curas Villeros) é um movimento de aproximadamente 25 sacerdotes da Igreja Católica Argentina, surgido em 1967, com padres que decidiram viver em bairros precários e humildes, como um compromisso de vida pelos pobres, exercendo uma ação pastoral em sintonia com a situação dos fiéis.

Em 1997, nomeado arcebispo de Buenos Aires, o cardeal Mario Jorge Bergoglio, hoje papa Francisco, aproximou-se desse segmento religioso, fortalecendo-o. Bergoglio tornou-se o seu maior aliado. Nascia ali o que o mundo inteiro conheceria como “uma Igreja pobre para os pobres”, como citaria Bergoglio ao tornar-se Francisco em março de 2013.

“Francisco vem dessa Igreja pobre para os pobres. Ele se formou nessa Igreja e depois soube como a representar de forma maravilhosa. Ele fez transcender essa visão, dando-lhe uma dimensão mundial”, conta Toto, explicando que, antes de Bergoglio, os arcebispos sempre ficavam no terreno protocolar e cerimonial.

“Quando apareceu Bergoglio, tudo mudou. Ele vinha de ônibus, ia às casas das pessoas, tornava-se amigo, perguntava sobre o que precisávamos e respondia a essa necessidade. Esse amigo de todos tornou-se papa”, lembra.

O lar de Francisco

Mas tudo começou no bairro de Flores, em Buenos Aires, onde o papa Francisco nasceu, cresceu e descobriu a sua vocação religiosa.

“Temos sentidos contraditórios. Por um lado, sentimos a tristeza de um luto por haver perdido a presença física de uma pessoa que amamos; por outro, sabemos que a sua alma está com Deus, que ele não sofre mais e que cuida de nós do céu. Estamos comovidos, mas felizes porque ele agora pode descansar e reencontrar os seus pais e a sua avó, a quem ele tanto se referia como uma inspiração religiosa”, diz à RFI o padre José Luis Carbajal, responsável pela Basílica São José de Flores, por onde o então Mario Jorge Bergoglio passava antes de se tornar papa.

Pela porta desta Basílica, Mario Bergoglio passou aos 17 anos de idade, indo ao encontro de amigos. Viu a luz acesa no confessionário e teve uma vontade irresistível de entrar. Aquela confissão teria um impacto irreversível na vida do adolescente e, décadas depois, no mundo.

Quando completou dez anos de papado, Francisco enviou a esta basílica uma imagem de São José, santo do qual era devoto, justamente pelo seu passado em Flores.

“Sinto uma dor imensa porque pensei que ele ficaria bem, sobretudo após participar ontem da missa de Páscoa. Hoje, recebi essa notícia que me dói na alma. Eu pensei que ele fosse conseguir se recuperar, mas não deu. Pelo menos, foi uma linda forma de se despedir de nós”, considera a aposentada María Villagra, de 74 anos.

“A minha forma de canalizar essa dor será vir até esta igreja todos os dias até o dia em que eu não conseguir mais. Eu acredito que o futuro de Francisco será um dia a beatificação e a santificação”, prevê.

A casa dos Bergoglio ficava na rua Membrillar 531, a seis quarteirões da basílica. A meio quarteirão da casa, na pequena praça Herminia Brumana, uma placa lembra o passado em que o pequeno Jorge, de apenas nove anos, jogava futebol com os amigos depois da escola: “Por aqui corria Jorge atrás de uma bola”.

Sem volta à Argentina

A estudante Olivia Anun Castro, de 14 anos, andou os dois quarteirões que separam a escola Fernando Fader da Basílica, para ver as espontâneas demonstrações de carinho.

“O papa Francisco era uma boa pessoa que abriu as portas da Igreja para os homossexuais. Eu não cheguei a conhecê-lo. Sempre esperamos que ele voltasse à Argentina, mas quis o destino que ele se despedisse num dia em que celebramos a ressurreição de Cristo”, observa Olivia.

O Papa sempre quis voltar à Argentina, especialmente a Buenos Aires, sobretudo a Flores, o bairro de classe média que o viu crescer e tornar-se sacerdote.

Francisco negava-se ao uso político da sua popularidade. Porém, a política partidária argentina o colocou sempre num dos lados da polarização.

Em 1997, quiseram enviá-lo para uma paróquia distante, Bergoglio pediu para ficar.

“Não quero sair de Buenos Aires. Fora de Buenos Aires, não sirvo para nada”, disse. Acabou nomeado como bispo coadjutor do então arcebispo de Buenos Aires, monsenhor Antonio Quarracino. No ano seguinte, com a morte do superior, Bergoglio tornou-se arcebispo. Quando já tinha a carta de renúncia pronta, viajou a Roma para nunca mais voltar a Buenos Aires, de onde não queria sair.

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