São Paulo — Restaurantes registrados no mesmo endereço, mas com nomes, fotos, CNPJs, preços e tempo e taxa de entrega diferentes estão aparecendo cada vez com mais frequência nos aplicativos de comida de São Paulo. O Metrópoles conversou com um especialista para entender por que as lojas fazem isso, como essa prática pode ser prejudicial aos clientes e, até, em que casos ela é permitida.
Segundo Roberto Kanter, professor de Marketing e Gestão Comercial da Fundação Getúlio Vargas (FGV), do ponto de vista legal, salvo ressalvas, não é necessariamente um crime criar mais de uma conta nos apps de delivery — mas, do ponto de vista ético e moral, é uma situação problemática.
Legalmente, a prática é considerada criminosa quando há omissão deliberada de que se trata do mesmo fornecedor; quando os preços distorcem o direito à informação clara e adequada, garantido pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC, art. 6º, III); e/ou quando há publicidade enganosa (art. 37 do CDC), como indução a erro deliberada.
Para Roberto Kanter, o problema ético se dá na diferença proposital de preços ou taxas para o mesmo produto, falta de transparência sobre a identidade do restaurante e/ou tentativa de esconder más avaliações ou manipular reputações.
“Podemos, sim, considerar essa prática como uma espécie de armadilha algorítmica, onde o restaurante se aproveita da arquitetura da plataforma para manipular a experiência do consumidor”, avaliou o especialista.
Embora camuflada, a conduta não passa totalmente despercebida pelos consumidores. Na rede social Reddit, por exemplo, usuários comentaram a situação em um dos fóruns de discussão e têm palpites sobre o tema.
“Sempre imaginei que fosse por nota baixa. Já cansei de pedir comida porque o primeiro pedido veio bom e me arrepender amargamente depois. Daí imaginei que o ‘restaurante novo’, além de ficar no topo do marketplace, chama atenção pela nota boa, atraindo novos clientes. Enquanto que o ‘antigo’, conforme as reclamações vão surgindo, vai sendo ‘abandonado’, até de fato não valer mais a pena”, escreveu uma usuária.
“Às vezes eu queria experimentar alguma coisa nova e estava com preguiça de sair de casa. Daí, [você} abre a lista que tem 500 lojas, que na verdade são umas 10 só, e se de fato tiver alguma coisa boa escondida lá, se perde no meio de tudo. É ruim pro consumidor e pro lojista que quer fazer certinho”, escreveu outra.
“Já reclamei isso na minha cidade várias vezes”, acrescentou um terceiro, que disse ter deixado de usar uma plataforma de delivery em que essa prática é muito comum. “Não adianta mais tentar conhecer locais novos por lá”, concluiu.
Por que um restaurante cria vários perfis nos aplicativos de delivery?
A multiplicidade de perfis atende objetivos estratégicos dos restaurantes, como aumentar a visibilidade algorítmica, já que perfis novos tendem a ganhar destaque temporário; segmentar os cardápios e públicos; burlar as avaliações ruins, como se a loja começasse “do zero” após receber notas baixas, escapando da má reputação; realizar teste A/B disfarçado, com os diferentes preços e taxas nos perfis; e aumentar a cobertura geográfica percebida.
Para Kanter, criar vários perfis faz com que os restaurantes ganhem visibilidade, controlem a percepção e tenham flexibilidade comercial.
Mesmo sendo ilegal ou imoral, Roberto avalia que as plataformas de delivery têm conhecimento da prática, “tanto que possuem cláusulas nos seus contratos proibindo múltiplos perfis sem justificativa, mas raramente fiscalizam com rigor”, disse.
O especialista acredita que fiscalizar e punir as múltiplas contas pode gerar um conflito de interesse, já que, quanto mais perfis, mais pedidos e, quanto mais pedidos, mais taxas para o aplicativo. Além disso, é difícil, para os apps, provar que o objetivo dos restaurantes é enganar os clientes.
“Como a prática ainda não foi amplamente judicializada, há espaço para tolerância”, explicou o professor.
Em nota enviada à reportagem, o iFood, uma das principais plataformas de delivery do país, afirmou que “a abertura de múltiplas contas por um mesmo restaurante, sem justificativa válida, não é permitida, assim como o uso indevido de marcas ou informações de terceiros”.
Prática pode entrar na gama das dark kitchens?
O Metrópoles procurou o Procon-SP para entender se os restaurantes com múltiplas contas registradas no mesmo endereço, mas com nomes e preços diferentes, podem ser considerados dark kitchens.
O órgão explicou que as “dark kitchens” são as cozinhas industriais que fornecem alimentos prontos aos consumidores sem a opção de alimentação no local, possibilitando que mais de um restaurante possa usufruir do mesmo espaço físico, oferecendo produtos distintos.
“Sobre estabelecimentos terem diferentes nomes-fantasia e oferecerem produtos com preços ou condições de entregas distintas, trata-se de uma política comercial não regulada pelo CDC”, disse o Procon-SP.
Em São Paulo, as dark kitchens têm regras estabelecidas pela Lei 17.853/2022 e Decreto 62.365/2023, que trata sobre sua instalação, funcionamento e localização da atividade.
Roberto Kanter explicou que as dark kitchens são naturalmente multimarcas, então é esperado que tenham vários perfis, cada um representando uma “marca digital” diferente, pois todos saem da mesma cozinha. Porém, nos casos em que não se trata de um estabelecimento do tipo, a justificativa de usar nomes diferentes cai por terra. “O uso de múltiplas contas aqui não é para diversificar operações, mas para manipular percepções”, avaliou o especialista.
O que o cliente deve fazer quando perceber essa prática
Ao se deparar com um restaurante que possui diversos perfis nas plataformas, o consumidor pode denunciar ao Procon com prints e comprovantes, usar o Reclame Aqui, divulgar nas redes sociais, pesquisar o endereço do restaurante e comparar os cardápios, fotos e preços das múltiplas contas.
Kanter sugere que os clientes evitem comprar em perfis sem avaliações ou com poucos comentários, desconfie de muitas contas similares ou com nomes criativos demais e verifique a razão social nos recibos de pedidos anteriores, para descobrir a “unidade-mãe”.
Perfis separados em categorias
Outra prática comum nos restaurantes de São Paulo é a criação, por parte de grandes redes, de perfis distintos colocados em diferentes categorias. Essas redes podem, por exemplo, criar contas por tipo de produtos, como sobremesas, sanduíches, combos, vegetarianos. Isso serve para que o estabelecimento consiga conversar com públicos específicos de forma diferente.
“Essas redes têm autorização formal das plataformas para operar com perfis distintos. É muito interessante e válido, respeitando as regras de ética e transparência já comentadas anteriormente”, explicou Roberto Kanter.
Armadilha algorítmica
O professor de Marketing e Gestão Comercial da FGV avaliou que o consumidor está, cada vez mais, vulnerável aos “truques algorítmicos”. A prática de criar diversas contas está relacionada ao conceito chamado “attention economy”, que refere-se à forma como a atenção humana é tratada como um recurso escasso, um bem valioso que é disputado por diversas fontes de informação.
“Vivemos uma era de plataformas com lógica própria, que operam quase como um mercado paralelo, onde as regras são criadas por algoritmos, e não pela legislação tradicional. Essa prática dos múltiplos perfis revela como a economia da atenção se cruza com estratégias de marketing camufladas, transformando a experiência do consumidor em um campo de disputa entre lógica algorítmica e ética comercial”, disse Roberto Kanter.
Para o especialista, será essencial, além da educação do consumidor, uma regulação mais clara sobre marketplaces digitais para equilibrar a balança.