Foi uma terça-feira atípica aquele 4 de novembro de 1969: o Corinthians batia o Santos por 2×0 e acenava com uma segunda vitória depois de 11 anos de absoluto jejum contra o time de Pelé. O corinthiano Luiz Inácio Lula da Silva, então diretor-suplente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, estava preocupado com a bola no gramado. Continuou assim quando, no intervalo, os alto-falantes anunciaram que a polícia matara o terrorista Carlos Marighella, líder da Aliança Libertadora Nacional.
Começava um novo ciclo na ditadura militar, com escalada repressiva e crescimento recorde na economia (9,5%). Na manhã da terça-feira seguinte (11 de novembro), representantes de Volkswagen, General Motors, Chrysler, Firestone, Philips e Constanta se reuniram com o chefe do Departamento de Ordem e Política Social (Dops) no ABC paulista, Israel Alves dos Santos Sobrinho, e o major Vicente de Albuquerque, do IV Regimento de Infantaria do Exército.
Na delegacia estiveram Evaldo Herbert Sirin, da General Motors; Mário de Souza Campos, da Chrysler; A. J. Vieira, da Firestone; coronel Evaldo Pedreschi, da Philips; major Adhemar Rudge, da Volkswagen; e Synésio de Oliveira, da Constanta.
Chefes das seções de segurança interna dessas indústrias queriam acelerar o funcionamento do Grupo de Trabalho (depois chamado Centro Comunitário) que serviria de cobertura à colaboração entre empresas privadas do ABC paulista, o Dops e o Exército. Segundo a ata da reunião, debateram “problemas” nas fábricas, decidiram a compra de “mapas do Grande ABC e outros artigos”, e estabeleceram um Centro de Coordenação no Dops.
— Estávamos defendendo nossas empresas dos terroristas, da subversão — conta Synésio de Oliveira, o representante da Constanta (empresa incorporada ao grupo Philips em 1998). — O esquema era: se houvesse um caso suspeito, comunicávamos à comunidade (de informações).
A cooperação entre empresas e ditadura militar foi permanente, intensa e quase sempre discreta, revelam documentos inéditos guardados nos arquivos do extinto Dops paulista. Uma parte foi descoberta e entregue ao GLOBO pelo historiador Antonio Luigi Negro, autor de um excelente livro sobre a emergência do sindicalismo brasileiro depois da Segunda Guerra (“Linhas de Montagem”, Editora Boitempo, 2004).
Outros papéis foram localizados em arquivos públicos e particulares de São Paulo, Buenos Aires e Washington. O conjunto é eloquente na demonstração de um colaboracionismo muito além dos milionários donativos empresariais recolhidos pelo banqueiro Gastão Vidigal, o industrial Henning Albert Boilesen e o advogado Paulo Sawaia para custear a criação de um corpo de polícia política dentro do Exército (a Operação Bandeirantes).
O intercâmbio entre empresas e órgãos de segurança ultrapassou o fornecimento rotineiro de Fuscas da Volkswagen, de Galaxies blindados da Ford, de caminhões da Ultragás, de refeições congeladas Supergel e de “gratificações” às equipes dos porões do regime.
Grandes empresas recrutaram pessoal nas Forças Armadas e na polícia, mantiveram aparatos de espionagem dos empregados dentro das fábricas e nos sindicatos. A Volks e a Chrysler, por exemplo, repassaram listas de funcionários aos órgãos de segurança, às vezes com as respectivas fichas funcionais. Na semana passada, ambas negaram o envolvimento.
A Volks ressaltou ter sido “sempre apolítica”. A DaimlerChrysler alegou total desconhecimento, “portanto não temos comentários”.
(Publicado aqui em 15 de maio de 2005)