Fim de tarde em Vitória de Santo Antão, Rua XV de Novembro, acabara de fazer a revisão periódica da saúde bucal no consultório do meu pai. Lembro, pouco antes de sair, que ouvimos uma barulhenta discussão, entre dois homens, à beira de praticar a contravenção da “via de fatos”. As pessoas assistiam à cena entre curiosas e amedrontadas quando alguém sensato telefonou para a delegacia.
Felizmente, o comissário e dois agente policiais chegaram a tempo de evitar o conflito. A voz potente da autoridade ordenou “teje presos!” Foi um santo remédio. Fez silêncio e os valentes foram conduzidos à delegacia para que fossem tomadas as devidas providências.
Incontinenti, a índole pacífica do meu pai tomou a direção da nossa casa. Tranquilos, caminhamos em silêncio. Mas a curiosidade da criança, com dez anos de idade e sem ter a noção precisa do que ocorreu, perguntou: – Pai o que é “teje preso”? que, para mim, pareceram palavras mágicas dos contos infantis. Afetuosamente lacônico, respondeu: – é a “voz de prisão”. Não entendi nada, tampouco, insisti na explicação.
O tempo foi passando e fui compreendendo as várias dimensões do episódio. Estudante de direito, aprendi nas aulas magníficas de Direito Penal ministradas pelo titular da Cátedra, Professor Everardo Luna, que a voz de prisão, está prevista no Código de Processo Penal ao tratar no capítulo “Da Prisão em Flagrante”, art. 301, que determina: “Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”.
A primeira constatação a fazer: a expressão está gramaticalmente incorreta (correto é “estejam presos”); a segunda constatação é que a ordem de prisão virou um jargão em contextos informais ou inspiração literária do livro de Chico Anysio (1931-2012) Teje Preso (Ed. Rocco, 1975), merecedor da seguinte referência do prefaciador Hermilo Borba Filho (1917-1976): “Neste seu novo livro, Chico Anysio transcende os limites do cômico e tenta o trágico (essa dualidade é ainda própria da atmosfera nordestina) com resultados excelentes na fabulação e na linguagem); por fim, o dever da abordagem do cidadão comum pressupõe uma dose elevada de coragem senão de heroísmo. Na linguagem popular é a voz do povo clamando pelo “chama a ‘puliça’”.
Voltando às “várias dimensões do episódio”, o fato nada tinha de banal. O cenário revelava, de um lado uma perturbação da ordem pública protegida pela lei, de outro, dois potenciais transgressores, presos em flagrante, mas, independente do tipo penal, assegurada a ampla defesa pelo devido processo legal, e, a mesmo tempo, a presença do Estado, usando como poder-dever, o monopólio da força legítima para assegurar a todos o ambiente de convivência pacífica.
A recordação de tempos tão longínquos me coloca diante do desafio de compreender que o fato perturbador da comunidade é resolvido graças ao Estado Democrático de Direito que abriga as soluções de conflitos a partir de remota e heroica construção histórica.
Sem maiores divagações, percebi que naquele momento, entraram em funcionamento os mecanismos previstos numa Constituição Democrática. Um poder legislou, outro poder executou o mandamento legal, e o terceiro poder cumpriu seu papel, segundo Montesquieu, como “a boca que pronuncia as palavras da lei”.
Infelizmente, a dinâmica do processo democrático não funciona de forma tão simples, tampouco o espírito republicano amadureceu suficiente para entender que os homens passam e as instituições permanecem ainda que se adaptando aos contextos históricos. O Federalista James Madison, por exemplo, explica a razão natural das imperfeições políticas ao afirmar: “O que é o próprio governo, senão a maior das críticas à natureza humana? Se os homens fossem anjos, não seria necessário governo algum. Se os homens fossem governados por anjos o governo não precisaria de controles internos nem externos”.
Por sua vez, na raiz da teoria da separação dos poderes, está dito “só o poder freia poder”, ou seja, estabelece que nenhum poder se sobrepõe ao outro. Entretanto, a experiência brasileira tem demonstrado hipertrofias alternadas, ora do Executivo, ora do Legislativo, ora do Judiciário, criando graves disfuncionalidades, inclusive numa questão fundamental que é o da gestão orçamentária.
Na prática, o que se observa são sérias distorções que afetam a natureza do sistema de governo resultando em invasões de competências que comprometem seriamente a governabilidade.
Enquanto isso, tudo tensiona o ambiente político. No interrogatório da testemunha da defesa no processo de golpe, por pouco, o Ministro Alexandre Moraes não deu voz de prisão, sem incorreções gramaticais, ao depoente, o ex-Ministro Aldo Rebelo.
Sem entrar no mérito da ameaça, o fato revela uma autoridade com inclinações autoritárias e um interrogado suspeito de ironizar ou desafiar o representante do STF, usando os recursos da nossa linguagem figurada.
No mínimo, a conclusão é que o a sociedade brasileira está contaminada pela predisposição ao confronto, agravada pelos nervos à flor pele e uma incapacidade generalizada para agir, exercendo a virtude política da moderação.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda