A sinceridade de 0 a 100 (Por Miguel Esteves Cardoso)

Anteontem dei comigo a sorrir pensando que não estava. Fotografaram-me sem eu saber e, ao contrário do que iria jurar (que estava absorto a ouvir o que alguém me dizia), estava a sorrir.

A partir de uma certa idade deixamos de controlar a nossa cara. O fingimento deixa de funcionar. Pensamos que estamos a fingir que estamos bem-dispostos, e interessados nalguma coisa ou pessoa que nos mostram, mas a nossa expressão é de enfado.

É a sinceridade que vem ao de cima. Vinga-se daqueles anos todos de falsidade. Deixa de ser reprimível. Será que aprende?

Note-se que a vontade de fingir é a mesma. A necessidade de disfarçar até é capaz de ser maior. Mas os nossos esforços já não enganam ninguém.

Temos uma capacidade terrível para mandar na nossa cara. Desde crianças que aprendemos a usar as nossas expressões para influenciar quem tem o poder.

À medida que os nossos pais nos vão conhecendo melhor, resistindo cada vez mais facilmente às nossas tentativas de manipulação, vamos sendo obrigados a aperfeiçoar as nossas técnicas, acrescentando aqui umas palavrinhas, ali uma dramática saída de cena.

Pior do que tudo, são eles que nos ensinam a disfarçar: “Não me interessa nada que estejas sem vontade nenhuma de ver os teus avós: quando chegarem, faz de conta que estavas cheio de saudades!”

Tornamo-nos peritos em decifração, sendo capazes de avaliar de 0 a 100 a sinceridade de qualquer sorriso, gesto ou declaração. Por isso é que é um alívio ver um filme: sabemos que estão todos a fingir. Mais do que um passatempo, é um intervalo.

Mas, mesmo assim, os grandes actores e as grandes interpretações também são um elemento precioso de formação: veja-se só de que são capazes os seres humanos!

Não é por acaso que falamos em fitas, e em fazer fitas.

Queixamo-nos quando não fomos convencidos. A insinceridade, damos de barato. Mas o esforço, ou a arte, ou o trabalho de preparação, podia ter sido maior.

Quando o fingimento falha, zangamo-nos.

(Transcrito do PÚBLICO)

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