“Numanice #3” consolida ‘pagospel’ e faz Ludmilla mais do que ‘rainha do pagode’

Ludmilla, com seu novo volume do projeto “Numanice“, o terceiro, cria uma cena que, contada, soa esperançosa. É uma cena festeira, batuqueira, pagodeira. Com todos os ingredientes que o povo se propõe a adicionar nas receitas para enfrentar o dia-a-dia, a cena parece conciliar evangélicos, macumbeiros, gays, héteros, avulsos e hiperfocados das redes sociais. A equipe da cantora tenta consolidá-la como “rainha do pagode”, mas “Numanice #3” faz de Ludmilla o maior nome do pop brasileiro.


Mulher preta e bissexual, Ludmilla preenche uma lacuna de referência que muitas pessoas procuravam. Quem cresceu em lar cristão, com pais que blindam (ou pensam que) a casa de provações mundanas, sabe. Os movimentos de “Numanice” não são novidade para o pagode, mas elevam o gênero para um local maior no pop brasileiro — o movimento foi escorraçado tal como o funk quando, no final dos anos 1990, passou a ter uma subvertente ainda mais comercial e que flertava com o sertanejo, com o charme, com o passinho nas festas e nos programas de auditório. Depois do segundo auge do Exaltasamba com a chegada das composições de Thiaguinho e do próprio “Tardezinha“, “Numanice” é um marco nas batucadas radiofônicas.

“Se não chorar com pagode não tem jeito, não. Nosso amor já era, não tem solução”, canta Ludmilla na quinta música do projeto citando Alcione, Belo, Péricles, Vitinho e o próprio Thiaguinho, como que dando para o ouvinte uma proposta de linha evolutiva do gênero. Mais que isso, reforçando um orgulho pagodeiro que, não fossem esses nomes, talvez fosse um sentimento visto como passageiro. O melhor de tudo é que a cantora dirige o projeto como mexe em seu celular na hora de ouvir música: vai de SZA (lembra de “Meu Homem É Seu Homem”?) e Ne-Yo (“Era Tão Bom” é versão de “So Sick”) a Belo, como uma boa ouvinte de música pop. E, de quebra, traz algumas narrativas que fazem o pagode respirar para além das narrativas amorosas masculinas e heterossexuais, desgastadas tais como um participante de reality show que parece não perceber que as coisas mudaram.

Quando o pagode vira ‘pagospel’ ou ‘pagod’

“Eu gosto de tudo o que eu ouço. Por mais que eu tocasse com pessoas do jazz, da música instrumental, o meu ipod tá sempre com repertório variado. Um dia tô no Keith Jarrett, no outro Beyoncé”, explicou, certa vez, o também evangélico Rafael Castilhol, tecladista, arranjador e, desde o primeiro Numanice, diretor musical.

Rafael acumula trabalhos que vão de Rita Lee à Anitta. Foi com Rita que Rafael desistiu de abandonar a música e também foi quando galgou as encruzilhadas de ser músico em um país que não valoriza muito a profissão. Para além disso um país que, cada vez mais evangélico, tende a pensar um mundo ideal que é sem cruzamentos com os gêneros mundanos. Quando viu, já era tecladista de Belo e, postariormente, diretor musical de turnê do cantor.

Essa mini-biografia de Castilhol aqui serve para ilustrar que, por ter comido pelas beiradas, o produtor soube ser também mais colaborativo que seus ilustríssimos antecessores no gênero. A figura de maior referência no pop-pagodeiro na função é Wilson Prateado, conhecido pela excelência no baixo, nos arranjos e nas broncas que dava em Belo. Em 2024, a dupla Castilhol-Ludmilla é uma parceria mais ativa.

O “Numanice” é um sucesso porque tem a cara, mas também, as mãos de Ludmilla. E, por isso, tem o amigo Vitinho, de quem é fã desde o tempo de Grupo Disfarce, o fenômeno brasiliense Menos É Mais, o piseiro de Mari Fernandez, o trap’n’b de Caio Luccas e Veigh e, claro, Belo, ídolo maior de qualquer pagodeiro. Todos ajudam a compor esse cenário preto-pop do projeto, um pagode que se entrelaça com RNB, criando uma música pop carioca que soa bem em qualquer lugar do país por ser, antes de tudo, orgulhosamente pagodeira.

Como toda e todo fã de pagode, Ludmilla gosta de estar à vontade. E o terceiro volume de “Numanice” consolida um gênero que, agora, acorda na mente de muitos ouvintes como uma expressão pop brasileira que reúne tudo aquilo que vem se discutindo sistematicamente em nosso cotidiano. “Só aqui você encontra”, diz Ludmilla antes de cantar “Cedo Ou Tarde”, hit do NX Zero. Ela se refere ao “astral” do projeto e não há nada mais sintomático do que uma canção de fé imortalizada por uma banda pop-emo cujo refrão, agora, vai ser cantado por todo o país com surdos e pandeiros em um arranjos muito conhecidos por quem tem algoritmo no You Tube voltado tanto para o gospel quanto para o pagode. Esse ouvinte existe e o “Numanice”, há muito tempo, soube enxergá-lo.

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