Crítica: The Shrouds, aguardado filme de David Cronenberg, é frio

Cannes (França) – Autor de clássicos do horror corporal (A Mosca e Videodrome), de thrillers eróticos (Crash: Estranhos Prazeres e Enraivecida na Fúria do Sexo) e de mistérios criminais (Marcas da Violência, Senhores do Crimes), o canadense David Cronenberg mistura esses gêneros com o luto pela esposa, falecida em 2017, em The Shrouds. Apesar de muito aguardado, o novo longa foi uma experiência frustrante.

The Shrouds (ou As Mortalhas, em tradução livre) conta a história do inventor Karsh (Vincent Cassel, sua aparência faz dele alter ego de Cronenberg), cuja maneira que encontrou para lidar com a morte da esposa Becca (Diane Kruger) foi desenvolver uma tecnologia revolucionária no setor funerário. A inovação consiste no uso de uma mortalha que recobre o cadáver e permite, através de um aplicativo, enxergar a ossada tridimensionalmente. O voyeurismo pós-morte é uma ideia original, embora mal explorada pelo roteiro também assinado pelo realizador.

O conflito acontece após o vandalismo de túmulos específicos – inclusive aquele onde foi enterrada Becca –, justamente durante o período em que Karsh pretende expandir o empreendimento. A paranoia do protagonista é alimentada pelo conspiracionismo de Terry (irmã gêmea de Becca), pela obsessão do hacker Maury (Guy Pearce), seu ex-marido, e ainda pelo aparecimento de Soo-Min (Sandrine Holt), a esposa de um magnata à beira da morte e que pretende investir na tecnologia.

Soma-se a isso a memória dos momentos terminais da doença de Becca, depois de uma mastectomia e amputação do braço desfigurar o corpo dela.

Homem de cabelo branco em frente a uma bicicleta
Vincent Cassel em The Shrouds

O corpo permanece em destaque na obra de Cronenberg, não só no corpo físico (a cirurgia de Becca, a cegueira de Soo-Min), como ainda no cadáver, já que a ossada começou a apresentar formações associadas a tumores pós-morte. Junto ao corpo, o sexo, ou à impossibilidade dele, e o mistério que conta com auxílio da inteligência artificial Hunny, remissiva de Becca. Um mistério que envolve (ou pode envolver) hackers, russos, chineses e o médico oncologista com o qual Karsh desconfia que a esposa tinha um relacionamento extraconjugal. Jamais ousaria questionar o imenso talento de Cronenberg em suturar tudo isso na ficção científica, mas The Shrouds é apenas frio.

Uma parte é devido à atmosfera mortuária, com tons sóbrios e metálicos e formas regulares como alternativa para Karsh lidar com o crescimento irregular e caótico de tumores. É também admirável observar a existência de camadas narrativas com que o diretor e o protagonista, metafórica e fisicamente, exumam e até vilipendiam a memória da esposa. Como a arte é a alternativa para o artista ressignificar o luto e elaborá-lo, a partir de Diane Kruger (muito desperdiçada), David Cronenberg lembra a perda da esposa também para o câncer.

Por sua vez, Karsh não concede à Becca o direito de ‘descansar em paz’, tendo até mesmo criado um restaurante ao lado do cemitério onde está enterrada.

Apesar de conceitualmente interessante, a narrativa é desinteressante à medida que avança. Há muita falação, a maior parte dela excessivamente expositiva; pouca resolução, não em termos de explicação do que aconteceu, mas no serviço à trama e aos personagens. A experiência é entediante pois não amadurece e revela um protagonista que não convence. Aprecio o anti-conspiracionismo de David Cronenberg, que introduz o tema só para criticar quem prefere revirar-se nos grupos de WhatsApp e Telegram em vez de perceber que, na maioria das vezes, o que está sendo buscado está diante de nossos olhos.

Ironicamente, quem ganha ao final de The Shrouds é a Tesla de Elon Musk, cujo X/Twitter é também um repositório inesgotável de conspirações.

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