Como poeira ao vento (Por Hubert Alquéres)

Cuba jogou a toalha. Diante da brutal escassez de alimentos, o governo cubano formalmente pediu ajuda humanitária à ONU para fazer frente ao seu programa de leite subsidiado para crianças de até sete anos. O programa, adotado nos anos 60, sempre foi uma das vitrines da Cuba de Fidel Castro e era símbolo dos avanços sociais promovidos pelo regime fidelista. Em nome de tais avanços, justificava-se o modelo de partido único, a repressão e a supressão das liberdades públicas e individuais.

O atuou governo do ditador Miguel Dias-Canel hesitou até não poder mais a pedir, oficialmente, ajuda à ONU, pois isso seria um atestado da falência de um modelo. Mas teve de se render à realidade. A economia cubana vive uma crise tão grave como a do “Período Especial”, dos anos 90, quando secou a fonte da “ajuda externa” com o colapso da União Soviética.

O socialismo cubano sempre dependeu da “solidariedade internacional” para sobreviver. Só superou o chamado “Período Especial” graças ao apoio do Hugo Chávez, com a Venezuela fornecendo petróleo subsidiado, bem abaixo dos preços internacionais. A tal ajuda somou-se a da Rússia de Putin. Essas fontes secaram com a grave crise da Venezuela e com a guerra da Ucrânia. Também contribuíram para o colapso da economia a pandemia da Covid e o endurecimento do bloqueio econômico, intensificado no governo Donald Trump.

A tragédia dos cubanos traduz-se em números alarmantes, alguns deles eloquentes. Sua economia combina recessão, em 2023 seu PIB decresceu 2%, com uma inflação de 30% e um déficit público de 18%. A crise está estampada nas gôndolas vazias dos mercados fornecedores de alimentos subsidiados, onde falta tudo e cada vez mais os cubanos levam para casa uma quantidade menor de alimentos, em decorrência do racionamento brutal. Para se ter ideia do tamanho da crise: Cuba importa 85% dos alimentos consumidos.

Sem produtos da cesta básica subsidiada, o cubano pode recorrer aos mercados privados, mas os preços são proibitivos para a imensa maioria. Segundo o Observatório Cubano de Direitos Humanos, 88% vivem com menos de US$1,9 por dia (estando, portanto, na linha da pobreza segundo critérios da ONU) e 48% vivem em situação de insegurança alimentar. As crianças são afetadas duramente pela escassez de alimentos, como leite, e as escolas começam a não assegurar duas refeições por dia.

Esvai-se, assim, uma das conquistas da Revolução, a superação da fome. Também virou poeira a garantia de uma aposentadoria digna. Como viver com uma pensão, na qual a maioria recebe entre 1.300 e 3 mil pesos? Isto significa receber, respectivamente, entre 10 e 25 dólares por mês.

O quadro tende a se agravar mais ainda com a decisão do governo de aumentar, no início de março, o preço dos combustíveis em 400% e o da energia em 25%. Esses dois itens estratégicos para a sobrevivência da população constantemente sofrem racionamentos. No caso da energia, o expressivo racionamento é implementado para não afetar a indústria do turismo, principal fonte de divisas para o país.

Em seu livro “Como poeira ao vento”, publicado no Brasil pela Boitempo Editorial, o laureado escritor Leonardo Padura aborda a diáspora cubana a partir de um grupo de amigos que viveram nos anos 70 e 80 a perspectiva de construção de um novo país, e viram seus sonhos destroçados por sucessivas crises. Só lhes restou o exílio como alternativa. O drama da perda de identidade e de suas raízes, seus laços culturais e familiares, são relatados de forma primorosa por Padura.

O maior escritor cubano dos tempos atuais nos leva a entender o maior êxodo da história de seu país. Nos últimos dois anos, mais de 550 mil cubanos – cerca de 5% da população da Ilha – migraram para os Estados Unidos. Destes, de cada dez, oito estão em idade de trabalho e fugiram da Ilha como exilados sociais porque não encontram perspectivas de sobrevivência em seu país.

Sim, os exilados cubanos da presente década também se espalharam por diversos países, como poeira ao vento. Eles representam um exército superior ao dos exilados dos primórdios da revolução cubana, quando 250 mil cubanos deixaram o país. O êxodo é ainda bem maior do que o dos anos 80, quando 130 mil pessoas saíram de Cuba em busca de um futuro melhor.

Se forem somadas todas as ondas imigratórias de Cuba, não se chega ao mesmo número da onda atual. Por que eles fogem do seu país vendendo tudo e deixando para trás parentes e amigos? Só a crise agônica de Cuba os leva a correr toda sorte de riscos até chegar aos Estados Unidos, percorrendo três mil quilômetros.

Também virou poeira a imagem de uma Cuba na qual “nadie se rende”. A ideia de Cuba como o bastião da luta antimperialista e farol do socialismo na América Latina não resiste aos estridentes indicadores sociais e econômicos.  Cai por terra o argumento abrigado pela esquerda do continente, segundo o qual as “conquistas sociais” justificavam as violações dos direitos humanos e a ditadura do partido único.

A utopia cansou. A ilha cantada em prosa e verso por intelectuais hagiográficos de Nuestra América perdeu seu encanto. A desigualdade social e o aumento da criminalidade se instalaram numa sociedade cuja autoestima desceu ladeira abaixo. O regime nada tem a oferecer aos cubanos, a não ser exigir mais e mais sacrifícios. E mais repressão se eles ousarem protestar contra cotidiano duro e cinzento que faz da fome uma companheira de vida.

Em 2003, o escritor português José Saramago, ele mesmo um homem de esquerda, divulgou uma carta aberta anunciando seu rompimento com a ditadura cubana. Estava impactado por uma nova onda de prisões e fuzilamentos. Dizia Saramago:

“Até aqui cheguei. De agora em diante, Cuba seguirá seu caminho, e eu fico onde estou. Discordar é um direito que se encontra e se encontrará inscrito com tinta invisível em todas as declarações de direitos humanos passadas, presentes e futuras. Discordar é um ato irrenunciável de consciência (…) Cuba não ganhou nenhuma heroica batalha fuzilando esses três homens, mas sim perdeu minha confiança, fraudou minhas esperanças, destruiu minhas ilusões. Até aqui cheguei.”

Cuba continua fraudando esperanças.

E até quando nossa esquerda continuará a se iludir, se até os cubanos já perderam as ilusões?

 

Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação.

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