O Brasil tem estratégia de combate ao desmatamento, mas não tem estratégia nacional de combate a crimes contra a fauna silvestre. Não há números nacionais sobre o crime, embora seja recorrente e organizado. As estimativas globais dão ideia da dimensão do mercado ilícito de fauna silvestre, que valeria entre US$ 7 bilhões e US$ 23 bilhões segundo estudo de 2018 da Interpol e outras entidades.
No Brasil, o comércio ilegal de animais silvestres ocorre tanto no território nacional como a biodiversidade brasileira é vendida no exterior. Uma jiboia leucística (mutação genética rara que faz com que a pele do animal seja branca e os olhos negros) foi levada de um zoológico em Niterói por um colecionador americano. Seu valor oscila entre US$ 350 mil e US$ 1 milhão. O criador comercializou os filhotes do animal traficado pela internet por até US$ 60 mil cada para clientes nos Estados Unidos, no Canadá e na Itália.
A história consta do detalhado relatório “A Lavanderia de Fauna Silvestre: como riscos de fraude, corrupção e lavagem viabilizam o tráfico de vida silvestre”, divulgado e obtido com exclusividade pelo Valor. Foi produzido pela Transparência Internacional-Brasil (movimento global presente em mais de cem países) com apoio técnico da Freeland Brasil (organização internacional que busca proteger pessoas e vida silvestre do crime organizado) e do Departamento de Estado dos EUA, através do Gabinete de Assuntos Internacionais sobre Narcóticos e Aplicação da Lei. O estudo mostra as implicações de crimes de corrupção com o tráfico de fauna.
O sumário-executivo tem 135 páginas de análise do marco legal e institucional do combate ao tráfico, com riscos de fraude e corrupção nos sistemas de manejo de fauna silvestre no Brasil e no comércio internacional de espécies. Os pesquisadores avaliaram as deficiências nas ações de fiscalização, investigação e responsabilização desempenhadas por órgãos ambientais e policiais, e identificaram riscos de corrupção associados.
Há 24 riscos de fraude, corrupção e lavagem que tornam possível o tráfico de fauna silvestre no país. Um risco existente, por exemplo, é o reuso de microchips de animais regulares para implantá-los em outros, capturados na natureza, e assim “lavando” sua origem ilegal.
As aves estão no grupo de animais mais traficados no Brasil – cerca de 80% dos animais apreendidos. Difícil indicar o segundo lugar, mas há forte participação de répteis e mamíferos. Um estudo citado no relatório indica que 23% das espécies de aves são afetadas pelo tráfico no Brasil.
“A captura irregular acontece no Brasil todo”, diz Dário Cardoso, analista do programa de integridade socioambiental da Transparência Internacional-Brasil. Há evidências que sugerem que os animais são capturados principalmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. São comercializados no Sudeste, Sul e Nordeste. Há poucos dados sobre o tráfico transnacional.
“É preciso ter ações de prevenção e combate à corrupção que viabilizam o tráfico de fauna silvestre”, diz Renato Morgado, gerente de programas da TI Brasil.
O relatório faz recomendações em cinco blocos. Um deles cita a necessidade de ações sobre a prevenção às fraudes de sistemas de controle de manejo de fauna – para que animais capturados ilegalmente possam passar a existir legalmente. O estudo recomenda alertas automáticos nos sistemas de controle digitais.
Outra vertente é no campo antilavagem do lucro proveniente do tráfico. “O animal, pelo valor que pode ter, acaba sendo um ativo na lógica econômica. Há a ‘lavagem’ de dinheiro do tráfico e a de ‘esquentamento’ da fauna capturada ilegalmente”, segue Morgado. “Portanto, é preciso adaptar os instrumentos brasileiros antilavagem para que tenham capacidade de detectar a manobra no tráfico de fauna silvestre”, diz. Isso inclui alertas específicos no sistema financeiro para o tráfico de fauna silvestre, por exemplo.
“Não é um crime aleatório, muito pelo contrário. É um crime bem pensado e estruturado”, diz Cardoso, especialista em ciências criminais. “O grande problema é que faltam informações dos órgãos ambientais sobre apreensões e multas. É um quadro dramático de falta de transparência”, continua. “Sem isso, não se tem dimensão concreta do problema, e é difícil elaborar estratégias mais eficazes”.
O relatório conta 18 casos e operações de combate ao tráfico. Há zoológicos de fachada, veterinários envolvidos, fiscais, empresas de carga. Aves chegam a mercados internacionais via tráfico de ovos.
Fonte: Valor Econômico