Crise na Venezuela pede revisão de conceitos (por Marcos Magalhães)

A chegada à Espanha do candidato da oposição às eleições na Venezuela, ocorridas em julho, pode ser um bom momento para que os simpatizantes do regime chavista no Brasil promovam uma revisão de conceitos sobre o que ocorre no país vizinho.

O político, diplomata e analista Edmundo González Urrutía, de 75 anos, agora é um asilado político. Ele era alvo de mandado de prisão sob a acusação de conspiração, mas obteve do governo um salvo-conduto que lhe permitiu deixar o país.

Existem sinais eloquentes de que González teria vencido as eleições. O órgão eleitoral da Venezuela, porém, preferiu apontar o atual presidente, Nicolás Maduro, como o vencedor.

Quando se saberá a verdade? Provavelmente nunca, pois o governo alegou a ocorrência de ataque cibernético para se esquivar de apresentar as atas eleitorais.

E quem reconheceu prontamente a vitória do candidato oficial? Os amigos de sempre, como os governos de Cuba, Nicarágua, China e Rússia. Além de partidos políticos que sempre tiveram boas relações com o chavismo, como o Partido dos Trabalhadores.

“O PT saúda o povo venezuelano pelo processo eleitoral ocorrido no domingo, dia 28 de julho de 2024, em uma jornada pacífica, democrática e soberana”, diz a nota emitida pela Executiva Nacional do partido, um dia após o pleito.

Em sinal claro às potências ocidentais, o partido prometeu ainda seguir “vigilante para que os problemas da América Latina e do Caribe sejam tratados pelos povos de nossa região, sem nenhum tipo de violência e ingerência externa”.

De lá para cá, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem se equilibrado entre o pragmatismo histórico da diplomacia brasileira e a resistência ideológica de vários setores de seu partido e da esquerda brasileira, que vêm em Maduro um aliado.

O vasto bigode de Maduro e tom bélico de seus discursos ressoam como ecos de antigos generais cheios de medalhas espalhados por diversas capitais latino-americanas. Generais contra os quais os partidos de esquerda costumavam lutar nos anos 1970.

As práticas do regime chavista, segundo relatos frequentes, são cada vez mais parecidas às das antigas ditaduras do continente. Prisões arbitrárias no meio da noite, perseguição à oposição, censura à imprensa.

Como se chama isso? Segundo Lula, não se trata de uma ditadura, mas de “um rolo”, ou um “regime desagradável”. O comportamento do companheiro Maduro, admitiu o presidente, “deixa a desejar”.

Mesmo assim, seu governo procura demonstrar certa neutralidade diante das ações cada vez mais autoritárias do governo da Venezuela. E boa parte dos setores que o apoiam na esquerda prefere ver o regime chavista como um baluarte anti-imperialista.

Aqui se unem dois conceitos que parecem pedir uma atualização para a segunda década do século 21. O primeiro deles tem a ver com o próprio sistema político. Que importância real a esquerda tradicional dá aos temas das liberdades e dos direitos humanos?

Em 2022 Lula recebeu milhões de votos de pessoas que preferiam não ter feito isso, mas que aceitaram o apelo em nome da democracia. Em nome do combate à extrema direita que procurava se manter no poder a qualquer custo.

De certa forma, pode-se talvez dizer que Lula deve seu terceiro mandato a eleitores liberais, que têm horror ao extremismo político de políticos como Jair Bolsonaro. Ou como Nicolás Maduro.

Como o presidente pode justificar a esses eleitores a tímida postura em relação à provável fraude nas eleições venezuelanas? E que palavras essa esquerda tradicional poderia dirigir aos liberais que convocou para vencer a ameaça bolsonarista?

O argumento anti-imperialista sempre é colocado sobre a mesa. Apenas o chavismo seria capaz de resistir à ambição dos Estados Unidos em relação às reservas de petróleo da Venezuela. E aqui está o segundo ponto importante de reflexão.

No momento em que o mundo se encaminha para a transição energética, o petróleo parece ainda exercer grande fascínio junto a essa esquerda tradicional. Como se ainda fosse o caminho mais fácil para o desenvolvimento e a autonomia.

Portanto, permanecer ao lado de Maduro serviria, ao mesmo tempo, para permitir o crescimento independente da Venezuela e para garantir a contribuição do país à construção de uma nova ordem multipolar, com a ascensão de países como Rússia e China e o fim do unilateralismo dos Estados Unidos.

É verdade que o petróleo ainda movimentará boa parte da economia ao longo dos próximos anos. Também é verdade, porém, que o mundo atravessa uma crise climática sem precedentes, que vai exigir de todos nós soluções rápidas e criativas.

Mais estratégico do que o petróleo, portanto, parece ser a pesquisa de novas e renováveis fontes de energia. Fontes que nos permitam projetar a possibilidade de manutenção da saúde de nosso pequeno planeta por muito tempo ainda.

Por outro lado, os setores que ainda apoiam os caminhos adotados pelo chavismo poderiam deixar um pouco mais claro o que realmente pensam a respeito do estado de direito, das liberdades democráticas e dos direitos humanos.

Porque não dá para atacar Bolsonaro de um lado e defender Maduro de outro. Autoritarismo existe à direita e à esquerda. O momento que vivemos no Brasil exige mais clareza em relação à defesa da democracia.

 

Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.