O diário de Maria Firmina dos Reis

Se escrever é habitar a solidão, a escritora tinha muitas moradas. No quarto silencioso de uma casa em Guimarães, ela deságua angústias e reflexões em seu diário. Ela publicou Úrsula, o primeiro romance abolicionista no Brasil. Trabalhou como professora no interior do Maranhão patriarcal e escravista da segunda metade do século XIX. Essa mulher é negra. Chama-se Maria Firmina dos Reis.

“Álbum” é um pequeno compilado de suas confissões diárias. São apenas 28 páginas, que datam de 1853 a 1903. São textos que navegam por suas relações afetivas, pequenos fatos cotidianos, declarações de amizades, lamentações por falecimentos, reflexões sobre Deus e a solidão que a fustigava, aproximando-a do suicídio. Esse é o objeto do artigo “Maria Firmina dos Reis: escrita íntima na construção do si mesmo”, de Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora de História da USP (Universidade de São Paulo) e publicado na Revista Estudos Avançados, da mesma instituição.

O diário é seu confidente porque o recato da época e as poucas amizades oprimiam. A vida não permitia desabafos e ela mergulhava na melancolia. “Eu não aborreço aos homens, nem ao mundo, mas há horas, e dias inteiros, que aborreço a mim própria”, entrega-se. Firmina define esses escritos como o livro da alma, confidências entre ela e Deus.

Em “Resumo da Minha Vida”, recorda momentos da infância e adolescência com uma irmã e uma prima em Guimarães (MA): “eu não podia deixar de ser uma criatura frágil, tímida, e por consequência melancólica (…) Encerrada na casa materna, só conhecia o céu, as estrelas, e as flores que minha avó cultivava com esmero: foram elas o meu primeiro amor”.

“Tal isolamento pode ser indício de que Firmina e sua irmã sofressem rejeição social devido ao fato de serem negras e bastardas, com sua mãe tentando preservá-las”, afirma a autora, que, entretanto, contesta essa informação. Acreditava-se que ela seria filha bastarda da família Reis e teria mãe branca. Porém, documentos dizem que sua mãe é uma ex-escrava e assim, seus pais seriam negros. Restaria entender qual sua relação com a família Reis, branca. Outra nova informação é sobre seu nascimento, ao invés de 11 de outubro de 1825, foi corrigido para em 11 de março de 1822.

Seu romance Úrsula, publicado em 1859, tem as características do romantismo, em uma narrativa de amor, intriga e morte de um triângulo amoroso. Sua originalidade, todavia, é a abordagem das personagens escravizadas. Abandona os estereótipos da mulata sensual, o moleque esperto, o escravo vingativo ou a mãe sofredora para denunciar as violências da escravidão. As personagens têm vozes e visões próprias, que enxergam as injustiças da opressão.

Gupeva, outro romance, foi publicado como folhetim entre 1861 e 1862. O conto “A Escrava” (1887) foi publicado em jornais maranhenses, assim como seus poemas. Durante quase todo século XX suas obras foram esquecidas. Sua redescoberta veio na década de 1970, quando seu primeiro romance foi republicado. Em 1975, uma rua e um colégio de São Luís ganharam seu nome.

O exílio íntimo em que viveu parece antecipar o silêncio que o universo literário lhe ofereceu por muito tempo. Em uma das passagens ela fala de seu apartamento da sociedade da época: “Será talvez tudo isso – mas eu nunca o vivi; ou se vivi, compreendi a vida por outros desvios, por outras sendas, por onde nem todos passam. Penso e sinto: meu sentir e meu pensar não os compreende ninguém, porque também a ninguém os revelo”. Mas nem tudo é desassossego. Há trechos alegres e palavras dedicadas a amigos e amigas, sobretudo sua relação mais próxima com Teresa de Jesus Cabral, a quem dedica um poema.

Segundo a autora do trabalho, pairam algumas dúvidas sobre “Álbum”. A família afirma que os papéis foram quase destruídos após uma tentativa de assalto. Para a pesquisadora Luiza Lobo, as poucas páginas da obra são resultado da censura imposta pelos familiares, que desejam proteger a privacidade de Firmina

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