Burocracia, impostos e a morte técnica (por Gustavo Krause)

– Vou morrer. Reuni a família e fiz este comunicado sem dramas ou lamúrias. Com surpresa e preocupação, veio a pergunta: – Pai, é doença incurável ou suicídio anunciado?

  • Nem uma coisa, nem outra. Vou praticar a “morte técnica”. E explico. Estou saudável; nem quero sair da vida voluntariamente. A vida é, apenas, um intervalo entre o nascimento e morte, mas vale a pena ser vivida. – Então, indagou assustada a primogênita: – por que esta história de “morte técnica”?

– Eu não sou eu, nem você é você; nós somos números, códigos, senhas, papéis, certidões, uma miríade de consumidores idiotas e contribuintes assaltados. Aliás, 31 de maio é o último dia do prazo para a declaração do imposto de renda, deveria ser (já que tem dia de tudo) “o Dia Nacional da Tunga”.

  • Calma, pai! Ponderou o único varão. – Sosseguem. Estou tranqüilo. E tá tudo planejado. A morte técnica é o caminho. Tentei ser um Indivíduo Não-Governamental (ING). Impossível. O “Big Brother” não deixa. Câmeras, escutas, algoritmos, bisbilhotam a vida de gente honesta e os criminosos seguem impunes. A burocracia é a indesejável companheira do berço (registro civil) ao túmulo (atestado de óbito).
  • Em compensação, PIX para o nosso moderno sistema financeiro! Mas haja tarifa e a mordida no consignado da mísera aposentadoria que enche a burra da banca e dos bacanas que inventaram a arapuca. E por falar em tarifa, um amigo caiu na besteira de deixar 600 reais numa conta bancária inerte (inerte para ele); cinco meses depois estava no vermelho em 70 reais. Mandou cobrir o “saldo devedor”. Tarde demais. Seu limpíssimo nome estava aonde? Nas malhas da SERASA.
  • Tudo bem, pai, mas o que é “morte técnica”? Insistiu a impaciência da caçula. – É o seguinte: vou fazer uma viagem de balão (tal qual a “tragédia do padre de balão”, abril, 2008), mas de mentirinha. Vocês encenarão o drama: Krause está desaparecido e morto (para tristeza dos amigos e alegria dos inimigos)!
  • Diante do fato público e notório, vocês conseguem um atestado de óbito. Deixe estar que o balão tem destino certo: uma ilha na Bahia (a Utopia do Século XXI) onde ninguém trabalha. Lá todo mundo se chama Domingos e o grande amigo que vai me acolher por um ano é o Domingão, personagem atualizado de Robinson Crusoé, o Sexta-Feira. Não deixarei débitos; não tenho seguro de vida, sequer a pendência do inventário: o que tem, já está no nome de vocês. Morri. Libertei-me de tudo. Morri tecnicamente; morri para o mundo formal, o mundo da aporrinhação, da maldita burocracia, dos códigos; a minha morte é libertação do ser de papel cujo nome é um número. Ressuscitarei no tricentésimo sexagésimo quinto dia, em carne e osso, e voltarei para vocês.

– Pai, agora você endoidou de vez, disseram os cinco a uma só voz, como se fosse um coro ensaiado; como é que você vai viver? E sobreviver? E o Plano de Saúde? Antes que prolongassem as perguntas do mundo dos “vivos”, entrei de dois pés: – Estarei morto! Meu único documento será o atestado de óbito que, no Brasil, vale mais do que o cadáver. Não esqueçam: estou tecnicamente morto e fisicamente vivo. Carteira de identidade? Estou morto. Plano de Saúde? Preencher formulários? Atestado de óbito na cara do funcionário, perplexo, porém vencido pela força do papel que é muito mais importante do que a pessoa. Fiquem tranqüilos! Vai dar tudo certo.

E deu certo. Um ano depois, passei a viver minha morte técnica. Uma beleza. No começo, surpresas e dúvidas. Um grande jurista pernambucano deu um parecer notável; defendeu brilhantemente a tese da morte técnica; noveleiro, o jurista comparou minha conduta a de Marconi Ferraço, o ex-vilão da novela Duas Caras, recuperado pelo IBOPE. No meu caso, o parecer demonstra que não houve fraude, tampouco a nova vida do “morto técnico” causou, nem causará danos.

Livre. Liberdade absoluta que só a morte proporcionou e me fez viver o melhor dos mundos: mesadinha garantida pela família para as necessidades básicas; um charutinho de vez em quando; os amigos, contentes; os inimigos, putos da vida; as burocracias, derrotadas. Todos se renderam à realidade do atestado de óbito ao qual anexei o parecer do grande jurista.

Do mundo dos vivos, somente duas coisas continuaram a fazer parte da agradável rotina: o endereço na internet ([email protected]); um trabalho leve para ganhar uns trocados – o de Ghost Writer fantasma que escreve, sob encomenda, para os outros.

Antes que eu esqueça: trocados sem recibo, afinal de contas estou morto e os mortos não pagam impostos.

 

Gustavo Krause foi ministro da Fazenda 

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