{"id":72270,"date":"2024-08-17T16:49:09","date_gmt":"2024-08-17T19:49:09","guid":{"rendered":"https:\/\/agencia5.jornalfloripa.com.br\/agencia5jf\/72270"},"modified":"2024-08-17T16:49:09","modified_gmt":"2024-08-17T19:49:09","slug":"para-uma-antropologia-do-novo-fascismo","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/agencia5.jornalfloripa.com.br\/agencia5jf\/72270","title":{"rendered":"Para uma Antropologia do novo fascismo"},"content":{"rendered":"
Por\u00a0Franco Berardi (Bifo)<\/strong>\u00a0em\u00a0El Salto<\/em>\u00a0| Tradu\u00e7\u00e3o de\u00a0Glauco Faria<\/strong><\/p>\n A reuni\u00e3o de c\u00fapula da ultradireita branca ocidental em Madri, em 29 de maio, foi o ponto culminante de um processo que escapa \u00e0s categorias da pol\u00edtica moderna. Continuamos a interpret\u00e1-lo com as categorias que temos: democracia, liberalismo, socialismo, fascismo etc\u2026 Mas acredito que essas categorias interpretativas da pol\u00edtica n\u00e3o capturam a ess\u00eancia desse processo, que n\u00e3o \u00e9 realmente novo no n\u00edvel enunciativo e program\u00e1tico, mas que \u00e9 radicalmente novo no n\u00edvel antropol\u00f3gico e psicocognitivo. As declara\u00e7\u00f5es dos l\u00edderes da direita global n\u00e3o explicam a for\u00e7a disruptiva do movimento que ningu\u00e9m parece ser capaz de deter, com algumas exce\u00e7\u00f5es, como a Col\u00f4mbia, o Brasil e a Espanha socialista, basti\u00f5es da resist\u00eancia humana.<\/p>\n A din\u00e2mica tradicional da democracia parlamentar e da luta social parece ter sido superada, como se um ciclone dotado de um poder sem precedentes estivesse varrendo as defesas que a sociedade havia constru\u00eddo ap\u00f3s a Segunda Guerra Mundial. A c\u00fapula de Madri reuniu forma\u00e7\u00f5es que convergem para o supremacismo branco ocidental em vez de movimentos liderados por pa\u00edses como a \u00cdndia de Modi, um exemplo de supremacismo n\u00e3o branco, e a R\u00fassia de Putin, um exemplo de supremacismo n\u00e3o ocidental.<\/p>\n LEIA TAMB\u00c9M<\/b><\/p>\n<\/div>\n<\/div>\n Na segunda metade de 2024, \u00e9 poss\u00edvel que os supremacistas de direita ganhem a presid\u00eancia dos EUA e obtenham a maioria no Parlamento Europeu, aliando-se ao centro. Mas mesmo que a direita n\u00e3o ven\u00e7a na Europa e os democratas ganhem as elei\u00e7\u00f5es nos EUA, isso n\u00e3o mudaria muita coisa, porque em quest\u00f5es fundamentais, principalmente em quest\u00f5es de rearmamento, guerra e mudan\u00e7a clim\u00e1tica, n\u00e3o h\u00e1 mais distin\u00e7\u00e3o entre os governos de extrema direita e de centro. Pelo contr\u00e1rio, na situa\u00e7\u00e3o atual, a vit\u00f3ria do lepenismo nas elei\u00e7\u00f5es de junho e a vit\u00f3ria de Trump em novembro teriam o efeito de rachar a unidade ocidental na guerra contra a R\u00fassia.<\/p>\n Mas o objeto da minha reflex\u00e3o n\u00e3o \u00e9 o resultado das elei\u00e7\u00f5es de 2024. O que me interessa aqui \u00e9 entender a din\u00e2mica antropol\u00f3gica e n\u00e3o meramente pol\u00edtica que transformou as sociedades do Ocidente e a maior parte do planeta depois de ter destru\u00eddo o movimento trabalhista organizado e desativado uma ap\u00f3s a outra das institui\u00e7\u00f5es internacionais da era liberal-democr\u00e1tica, come\u00e7ando pela ONU. O que est\u00e1 acontecendo pode ser reduzido a um retorno do fascismo hist\u00f3rico? Eu diria definitivamente que n\u00e3o: o nacionalismo fascista continua sendo a principal refer\u00eancia da linguagem e da mentalidade da classe pol\u00edtica que est\u00e1 surfando na onda reacion\u00e1ria porque s\u00e3o pessoas de n\u00edvel intelectual muito baixo, sem a capacidade de encontrar conceitos e palavras que correspondam \u00e0 for\u00e7a que a transforma\u00e7\u00e3o antropol\u00f3gica colocou \u00e0 sua disposi\u00e7\u00e3o. Parece-me que n\u00e3o h\u00e1 consci\u00eancia de direita que corresponda ao poder da direita. A brutalidade, afinal de contas, n\u00e3o costuma ser autoconsciente. O que est\u00e1 surgindo \u00e9 um fen\u00f4meno de propor\u00e7\u00f5es gigantescas que n\u00e3o pode ser explicado pelas categorias da pol\u00edtica porque est\u00e1 enraizado na muta\u00e7\u00e3o tecno-antropol\u00f3gica pela qual a humanidade passou nas \u00faltimas quatro d\u00e9cadas e porque constitui o resultado do hiper-liberalismo, que fez da competi\u00e7\u00e3o (ou seja, da guerra social) o princ\u00edpio universal das rela\u00e7\u00f5es inter-humanas.<\/p>\n As explica\u00e7\u00f5es pol\u00edticas da onda brutalista libert\u00e1ria captam apenas aspectos marginais do fen\u00f4meno: os democratas liberais argumentam que a ordem pol\u00edtica est\u00e1 abalada pela soberania autorit\u00e1ria. Os marxistas, ou muitos deles, interpretam o que est\u00e1 acontecendo como um retorno do fascismo hist\u00f3rico ap\u00f3s os erros cometidos pelo movimento trabalhista organizado. Mas nenhum deles explica o mais importante, a qualidade antropol\u00f3gica e ps\u00edquica que est\u00e1 por tr\u00e1s da ades\u00e3o em massa aos movimentos ultrarreacion\u00e1rios.<\/p>\n O que precisa ser entendido n\u00e3o \u00e9 o significado das declara\u00e7\u00f5es de Trump, Milei, Netanyahu ou Norendra Modi, mas as raz\u00f5es pelas quais uma maioria crescente da popula\u00e7\u00e3o planet\u00e1ria abra\u00e7a com entusiasmo a f\u00faria destrutiva desses mercen\u00e1rios. Ao contr\u00e1rio do nazi-fascismo hist\u00f3rico, que praticava a economia estatista, a onda supremacista funde os lugares-comuns do racismo e do conservadorismo cultural com uma acentua\u00e7\u00e3o hist\u00e9rica do liberalismo econ\u00f4mico: liberdade para ser brutal. Ser\u00e1 esta novidade suficiente para explicar o sucesso esmagador da miscel\u00e2nea intelectual que por toda parte desperta o entusiasmo das multid\u00f5es? Devemos pensar que as multid\u00f5es seguem Trump\u00a0apesar<\/em>\u00a0das suas mentiras descaradas, apesar do seu machismo de baixo grau? E que as multid\u00f5es israelitas apoiam o governo fascista apesar do exterm\u00ednio das crian\u00e7as palestinas, e que a maioria dos argentinos vota em Milei apesar da motosserra com a qual ele se prepara para destruir o estado de bem-estar social e fazer morrer de fome milh\u00f5es de trabalhadores? Ou talvez o racioc\u00ednio devesse ser invertido?<\/p>\n Eu proponho a hip\u00f3tese de que estamos diante de uma verdadeira invers\u00e3o de julgamento \u00e9tico: os americanos votam em Trump exatamente porque ele \u00e9 um estuprador e mentiroso, os israelenses apoiam Netanyahu exatamente porque ele pratica genoc\u00eddio, compensando uma necessidade profunda e inconfessada de repara\u00e7\u00f5es dos descendentes das v\u00edtimas de um genoc\u00eddio passado. E os jovens argentinos seguem Milei porque acreditam que, finalmente, os melhores poder\u00e3o se destacar e os demais passar\u00e3o fome como merecem.<\/p>\n A novidade que precisamos entender \u00e9 a qualidade ps\u00edquica, cognitiva e antropol\u00f3gica do Anthropos 2.0. A invers\u00e3o c\u00ednica do julgamento, o entusiasmo pela viol\u00eancia racista, implicam uma pervers\u00e3o da percep\u00e7\u00e3o e da elabora\u00e7\u00e3o ps\u00edquica, antes mesmo da moral: o capitalismo\u00a0gore<\/em>, como Sayak Valencia define a realidade mexicana.<\/p>\n Ao fazer da competi\u00e7\u00e3o o princ\u00edpio universal das rela\u00e7\u00f5es inter-humanas, o neoliberalismo ridicularizou a empatia pelo sofrimento do outro, corroeu os fundamentos da solidariedade e, assim, destruiu a civiliza\u00e7\u00e3o social. Quando Milei afirma que a justi\u00e7a social \u00e9 uma aberra\u00e7\u00e3o, ele est\u00e1 apenas legitimando o direito do mais forte e galvanizando a ilus\u00e3o de massas de indiv\u00edduos jovens (em sua maioria homens) convencidos de que s\u00e3o dotados de for\u00e7a para vencer todos os outros. Essa cren\u00e7a n\u00e3o \u00e9 facilmente desmantelada, porque quando amanh\u00e3 esses indiv\u00edduos forem, como j\u00e1 s\u00e3o, miser\u00e1veis solit\u00e1rios empobrecidos, eles culpar\u00e3o apenas os imigrantes, os comunistas ou Satan\u00e1s pela derrota, de acordo com a psicose que preferirem.<\/p>\n Enquanto a justi\u00e7a social \u00e9 condenada como uma intrus\u00e3o aberrante do socialismo estatal na liberdade dos indiv\u00edduos, a selvageria competitiva \u00e9 naturalizada: na luta pela vida, quem n\u00e3o estiver \u00e0 altura da tarefa merece morrer. A empatia n\u00e3o \u00e9 compat\u00edvel com a economia da sobreviv\u00eancia; na verdade, ela \u00e9 prejudicial para aqueles que a praticam. Como diz Thomas Wade no romance de Liu Cixin,\u00a0The Dark Forest<\/em>\u00a0(A Floresta Negra), 2008: \u201cSe perdermos nossa humanidade, perderemos algo; se perdermos nossa bestialidade, perderemos tudo\u201d. O brutalismo se torna a base da vida social.<\/p>\n McLuhan escreveu em 1964 que quando a comunica\u00e7\u00e3o inter-humana passa da dimens\u00e3o lenta da tecnologia alfab\u00e9tica para a dimens\u00e3o r\u00e1pida da tecnologia eletr\u00f4nica, o pensamento se torna impr\u00f3prio para a cr\u00edtica e o pensamento mitol\u00f3gico \u00e9 restaurado. A muta\u00e7\u00e3o tecnocomunicativa est\u00e1 se mostrando mais abrangente do que as pr\u00f3prias previs\u00f5es de McLuhan. De acordo com o CEO da Netflix, Reed Hastings, o principal concorrente das empresas de informa\u00e7\u00e3o \u00e9 o sono. Somando as horas de atividades multitarefas de uma pessoa comum em nossa \u00e9poca, o dia de trabalho \u00e9 de trinta e uma horas, das quais apenas seis horas e meia s\u00e3o dedicadas ao sono. Em\u00a024\/7 Capitalism and the End of Sleep<\/em>\u00a0(2015), Jonathan Crary escreve que o tempo m\u00e9dio gasto com o sono diminuiu em um s\u00e9culo de oito horas e meia para seis horas e meia. Que efeito a contra\u00e7\u00e3o do sono pode ter sobre a autonomia mental de um indiv\u00edduo?<\/p>\n Durante treze horas, a mente fica exposta a est\u00edmulos da infosfera. Um leitor de livros poderia expor sua mente \u00e0 recep\u00e7\u00e3o de sinais alfab\u00e9ticos por muitas horas, mas a intensidade e a velocidade dos impulsos eletr\u00f4nicos s\u00e3o incomparavelmente maiores. Quais s\u00e3o as consequ\u00eancias dessa transforma\u00e7\u00e3o tecnocomunicativa? Resumindo: a mente submetida ao bombardeio ininterrupto de impulsos eletr\u00f4nicos, independentemente de seu conte\u00fado, funciona de forma completamente diferente da mente alfab\u00e9tica, que tinha a capacidade de discriminar entre o verdadeiro e o falso nas informa\u00e7\u00f5es e que tinha a capacidade de construir um procedimento de elabora\u00e7\u00e3o individual. Na verdade, essa capacidade depende do tempo de processamento emocional e racional, que, no caso de um jovem que vive treze horas por dia na infosfera eletr\u00f4nica, \u00e9 reduzido a zero. A distin\u00e7\u00e3o entre a verdade e a falsidade das declara\u00e7\u00f5es torna-se n\u00e3o apenas dif\u00edcil, mas irrelevante, como quando se est\u00e1 em um ambiente de jogo. Em um ambiente como esse, n\u00e3o faz sentido aprovar ou desaprovar a viol\u00eancia dos homens verdes que invadem o planeta vermelho. Fazer isso s\u00f3 serviria para perder o jogo.<\/p>\n A configura\u00e7\u00e3o conectiva da mente contempor\u00e2nea est\u00e1 cada vez mais indiferente \u00e0 distin\u00e7\u00e3o entre verdadeiro e falso, bom e ruim. A escolha entre um est\u00edmulo e outro n\u00e3o depende do julgamento cr\u00edtico, mas do grau de excita\u00e7\u00e3o, ou estimula\u00e7\u00e3o dopamin\u00e9rgica. Para dar um exemplo pessoal: na noite de 9 de novembro de 2016, quando os resultados das elei\u00e7\u00f5es nos EUA eram esperados, com Hillary Clinton enfrentando Donald Trump, lembro-me de ter acordado \u00e0s quatro da manh\u00e3 para ligar meu computador e ver como a disputa havia sido decidida. N\u00e3o que eu simpatizasse com Hillary, mas achei moralmente repugnante pensar que seu oponente en\u00e9rgico pudesse se tornar presidente. No entanto, percebi que algo em mim queria que o evento mais barulhento, inesperado e chocante \u2013 em resumo, o mais estimulante para a dopamina \u2013 acontecesse. E meu sistema nervoso havia encontrado sua satisfa\u00e7\u00e3o: o horror havia prevalecido e o espectador em mim estava satisfeito, porque todo espectador sempre quer que a tela envie o est\u00edmulo mais forte. Acho que a mente conectiva evoluiu em uma dire\u00e7\u00e3o incompat\u00edvel com o julgamento moral e a discrimina\u00e7\u00e3o cr\u00edtica.<\/p>\n Em geral, o marxismo subestimou a quest\u00e3o demogr\u00e1fica depois que Marx criticou a tese malthusiana em meados do s\u00e9culo XIX. Marx estava certo contra Malthus, que previu que o crescimento populacional causaria transtornos sem levar em conta a evolu\u00e7\u00e3o t\u00e9cnica da produtividade. Mas os marxistas estavam errados ao n\u00e3o considerar as consequ\u00eancias da extraordin\u00e1ria acelera\u00e7\u00e3o possibilitada pela medicina e pelo progresso social. O salto demogr\u00e1fico de 2,5 bilh\u00f5es de pessoas vivas no planeta em 1950 para 8 bilh\u00f5es, 70 anos depois, significou uma intensifica\u00e7\u00e3o sem precedentes da explora\u00e7\u00e3o dos recursos da Terra e levou, acredito que inevitavelmente, \u00e0 devasta\u00e7\u00e3o do ambiente planet\u00e1rio.<\/p>\n Na d\u00e9cada de 1960, o et\u00f3logo John Bumpass Calhoun falou de um sumidouro comportamental. A devasta\u00e7\u00e3o ecol\u00f3gica torna inabit\u00e1veis \u00e1reas cada vez maiores do planeta e impossibilita o cultivo de \u00e1reas inteiras. \u00c9 compreens\u00edvel que as popula\u00e7\u00f5es do Sul global (ou seja, as \u00e1reas que sofreram os efeitos da coloniza\u00e7\u00e3o e que est\u00e3o sofrendo especialmente com os efeitos da mudan\u00e7a clim\u00e1tica) queiram se mudar para o Norte global (ou seja, a \u00e1rea que desfrutou dos benef\u00edcios da explora\u00e7\u00e3o colonial e que sofreu menos, por enquanto, com as consequ\u00eancias da mudan\u00e7a clim\u00e1tica). Tamb\u00e9m \u00e9 compreens\u00edvel (mesmo que seja imoral, mas o julgamento moral \u00e9 t\u00e3o bom quanto um dois de paus neste momento) que as pessoas no Norte global estejam assustadas com a ideia de massas crescentes de pessoas se mudando do Sul global para o Norte global. \u00c9 por isso que a grande migra\u00e7\u00e3o empurra e empurrar\u00e1 cada vez mais as popula\u00e7\u00f5es do Norte para posi\u00e7\u00f5es abertamente racistas. \u00c9 por isso que o genoc\u00eddio j\u00e1 \u00e9, e provavelmente se tornar\u00e1 cada vez mais, uma t\u00e9cnica de controle do movimento populacional. \u00c9 por isso que os europeus est\u00e3o fazendo tudo o que podem para garantir que milhares de pessoas sejam afogadas no mar ou espalhadas nos desertos do norte da \u00c1frica.<\/p>\n Em seu romance\u00a0Gun Island<\/em>\u00a0(2019), Amitav Gosh relata o ciclo comunicacional da migra\u00e7\u00e3o de telefones celulares:<\/p>\n N\u00e3o estamos mais no s\u00e9culo XX. N\u00e3o \u00e9 necess\u00e1rio um megacomputador para acessar a web. Tudo o que voc\u00ea precisa \u00e9 de um telefone e agora todo mundo tem um. E n\u00e3o importa se voc\u00ea \u00e9 analfabeto. Voc\u00ea pode encontrar o que est\u00e1 procurando apenas falando, e seu assistente virtual far\u00e1 o resto. Voc\u00ea ficaria surpreso com a rapidez e a capacidade de aprendizado das pessoas. \u00c9 assim que a jornada come\u00e7a, n\u00e3o comprando uma passagem e obtendo um passaporte. Ela come\u00e7a com um telefone e uma tecnologia de reconhecimento de voz.<\/em><\/p>\n [\u2026] Onde voc\u00ea acha que eles aprendem que precisam de uma vida melhor? Droga, onde voc\u00ea acha que eles t\u00eam uma ideia do que \u00e9 uma vida melhor? De seus telefones celulares, \u00e9 claro. \u00c9 l\u00e1 que eles veem fotos de outros pa\u00edses; \u00e9 l\u00e1 que eles veem an\u00fancios em que tudo parece fabuloso; eles veem coisas nas m\u00eddias sociais, postagens de vizinhos que j\u00e1 fizeram a viagem [\u2026] ent\u00e3o o que voc\u00ea acha que eles fazem? Eles voltam a plantar arroz? Voc\u00ea j\u00e1 tentou plantar arroz? Voc\u00ea acha que algu\u00e9m quer voltar para esses campos depois de ver fotos de seus amigos tomando confortavelmente lattes de caramelo em um caf\u00e9 de Berlim? E o mesmo celular que lhes mostra essas fotos tamb\u00e9m pode coloc\u00e1-los em contato com intermedi\u00e1rios [\u2026] digamos que um cara pe\u00e7a asilo na Su\u00e9cia. Ele precisar\u00e1 de uma hist\u00f3ria confi\u00e1vel. N\u00e3o uma daquelas hist\u00f3rias de besteira comuns. Uma hist\u00f3ria que eles queiram ouvir l\u00e1. Digamos que o cara tenha morrido de fome porque seus campos foram inundados; ou digamos que toda a aldeia tenha ficado doente por causa do ars\u00eanico no solo; ou digamos que o cara tenha sido espancado pelo seu senhorio porque n\u00e3o conseguiu pagar suas d\u00edvidas. Nada disso importa para os suecos. Os suecos gostam de pol\u00edtica, religi\u00e3o e sexo. Voc\u00ea precisa ter uma hist\u00f3ria de persegui\u00e7\u00e3o se quiser ser ouvido. \u00c9 assim que ajudo meus clientes, dou a eles esse tipo de hist\u00f3ria (Amitav Gosh, L\u2019isola dei fucili, Vicenza, Neri Pozza, 2019, pp. 74-76).<\/em><\/p>\n A grande migra\u00e7\u00e3o do sul e do leste para o norte e o oeste do mundo \u00e9 o processo que mais contribui para a onda ultrarreacion\u00e1ria, enquanto a oposi\u00e7\u00e3o entre o Norte imperialista e o Sul colonizado est\u00e1 assumindo contornos cada vez mais n\u00edtidos. Basta olhar o mapa dos pa\u00edses que condenam o colonialismo israelense e o mapa dos pa\u00edses que o apoiam para entender a geografia do confronto hist\u00f3rico que est\u00e1 tomando forma. Mas n\u00e3o se deve acreditar que a brutalidade pertence apenas ao mundo ocidental branco: a R\u00fassia de Putin n\u00e3o \u00e9 ocidental e a \u00cdndia de Modi n\u00e3o \u00e9 branca, mas ambas compartilham as caracter\u00edsticas essenciais do brutalismo e da indiferen\u00e7a ao genoc\u00eddio. A possibilidade de uma revolu\u00e7\u00e3o anticolonialista tinha perspectivas progressistas dentro da estrutura do internacionalismo dos trabalhadores, mas isso parece ter desaparecido do horizonte da hist\u00f3ria. E o fim do internacionalismo abriu a porta para o apocalipse que estamos vivendo.<\/p>\n Devemos levar em conta o fato de que a expans\u00e3o demogr\u00e1fica, que est\u00e1 recuando no Norte global, continuar\u00e1 em escala planet\u00e1ria at\u00e9 que a popula\u00e7\u00e3o mundial chegue a dez bilh\u00f5es. \u00c9 verdade que alguns dem\u00f3grafos preveem que, nesse ponto, em meados do s\u00e9culo, a popula\u00e7\u00e3o da Terra come\u00e7ar\u00e1 a diminuir a uma taxa semelhante \u00e0 que cresceu no s\u00e9culo passado. Na opini\u00e3o de Dean Spears, economista e dem\u00f3grafo da Universidade do Texas, em Austin, \u00e9 poss\u00edvel tra\u00e7ar uma curva que sobe abruptamente de dois bilh\u00f5es para dez bilh\u00f5es, atinge o pico por volta de 2040 e depois declina de forma igualmente abrupta.<\/p>\n Pelo menos tr\u00eas fatores contribuem para esse colapso na taxa de natalidade, os quais n\u00e3o analisarei aqui: o colapso da fertilidade masculina, a relut\u00e2ncia das mulheres em carregar as v\u00edtimas do holocausto clim\u00e1tico e b\u00e9lico e a tend\u00eancia da sexualidade de desaparecer como resultado da hiper-semiotiza\u00e7\u00e3o do desejo. Mas \u00e9 totalmente previs\u00edvel que a brutalidade pol\u00edtica e moral que est\u00e1 sendo imposta em todos os lugares, combinada com o poder crescente das armas de destrui\u00e7\u00e3o em massa e a racionalidade amoral da intelig\u00eancia artificial aplicada aos sistemas de armas, levar\u00e1 ao colapso final da civiliza\u00e7\u00e3o humana antes que a curva demogr\u00e1fica entre em sua fase descendente.<\/p>\n Podemos esperar um refluxo da tend\u00eancia que venho analisando neste texto? Para responder a isso, devemos considerar que a ascens\u00e3o do brutalismo libert\u00e1rio reuniu e est\u00e1 reunindo uma energia que parece surgir da din\u00e2mica profunda da evolu\u00e7\u00e3o tecnol\u00f3gica, ps\u00edquica e cognitiva da humanidade. Essa energia n\u00e3o pode ser contida pela a\u00e7\u00e3o voluntarista dos sujeitos pol\u00edticos sociais e culturais toda vez que eles n\u00e3o s\u00e3o percebidos de forma alguma no horizonte. Portanto, temo que essa onda s\u00f3 possa ser interrompida quando essa energia tiver produzido todos os efeitos de que \u00e9 capaz, assim como o Terceiro Reich s\u00f3 parou quando destruiu tudo o que podia destruir, inclusive a Alemanha. Mas a for\u00e7a destrutiva \u00e0 disposi\u00e7\u00e3o do Terceiro Reich global de nosso tempo \u00e9 suficiente para eliminar todos os vest\u00edgios de vida humana do planeta.<\/p>\n Franco Berardi, mais conhecido por Bifo, \u00e9 um fil\u00f3sofo, escritor e agitador cultural italiano. Oriundo do movimento opera\u00edsta, foi professor secund\u00e1rio em Bolonha e sempre se interessou sobre a rela\u00e7\u00e3o entre o movimento social anticapitalista e a comunica\u00e7\u00e3o independente.<\/p>\n ESTAMOS NAS REDES<\/b><\/p>\n Siga-nos no X (antigo Twitter)<\/p>\n Siga-nos no Instagram<\/p>\n Curta no Facebook<\/p>\n Inscreva-se no Youtube<\/p>\n Participe do Canal no WhatsApp<\/p>\n<\/div>\n<\/div>\n<\/div>\n<\/div>\n O post Para uma Antropologia do novo fascismo apareceu primeiro em Di\u00e1rio Carioca.<\/p>\n<\/div>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" Por\u00a0Franco Berardi (Bifo)\u00a0em\u00a0El Salto\u00a0| Tradu\u00e7\u00e3o de\u00a0Glauco Faria Din\u00e2mica profunda da onda nazi-libert\u00e1ria A reuni\u00e3o de c\u00fapula da ultradireita branca ocidental em Madri, em 29 de maio, foi o ponto culminante de um processo que escapa \u00e0s categorias da pol\u00edtica moderna. Continuamos a interpret\u00e1-lo com as categorias que temos: democracia, liberalismo,… Continue lendo → <\/span><\/a><\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":0,"comment_status":"closed","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"footnotes":""},"categories":[1],"tags":[],"class_list":["post-72270","post","type-post","status-publish","format-standard","hentry","category-sem-categoria"],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/agencia5.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/72270","targetHints":{"allow":["GET"]}}],"collection":[{"href":"https:\/\/agencia5.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/agencia5.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/agencia5.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/agencia5.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=72270"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/agencia5.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/72270\/revisions"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/agencia5.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=72270"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/agencia5.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=72270"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/agencia5.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=72270"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}Din\u00e2mica profunda da onda nazi-libert\u00e1ria<\/strong><\/h3>\n
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Brutalismo social<\/strong><\/h3>\n
O inconsciente conectivo e o fim da mente cr\u00edtica<\/strong><\/h3>\n
Tecnologia celular e a grande migra\u00e7\u00e3o<\/strong><\/h3>\n
Curva demogr\u00e1fica e conclus\u00f5es provis\u00f3rias<\/strong><\/h3>\n
Franco Berardi<\/h4>\n