Exército paga pensão à mulher condenada por morte fake de marido

O Exército paga pensão a uma mulher condenada por inventar a morte do próprio marido justamente para ganhar pensão militar.

Tudo começou em julho de 2015, quando Dilcineth Guerreiro de Braga, então com 49 anos, apresentou ao Exército uma certidão de óbito do esposo, o terceiro-sargento Gilmar Santos de Braga.

A causa da morte: Gilmar teria sido atropelado por um carro desgovernado em Borba, no interior do Amazonas. O documento em si, de fato, era verdadeiro – tinha sido lavrado em cartório –, mas o óbito era falso. O ex-militar segue vivo até hoje.

Certidão de óbito lavrada em cartório atestava morte de militar do Exército, mas ele segue vivo
Certidão de óbito lavrada em cartório atestava morte de militar do Exército, mas ele segue vivo

Após noticiar a morte falsa do marido ao Exército, Dilcineth passou a receber pensão militar, e também ganhou um auxílio-funeral. O golpe rendeu um prejuízo inicial de R$ 60 mil às Forças Armadas.

A fraude foi descoberta quando um dos filhos do casal denunciou o caso Exército, pouco mais de um ano após o início do pagamento da pensão. O rapaz enviou uma mensagem a um coronel informando que o pai estava vivo.

Os militares comprovaram a farsa, e o casal confessou o crime. O pagamento da pensão, então, foi bloqueado pelo Exército, em julho de 2017.

Em 31 de março de 2017 os militares encontraram Gilmar em sua residência. Ele confessou a fraude
Em 31 de março de 2017, os militares encontraram Gilmar em sua residência. Ele confessou a fraude

Quatro anos depois, em 2021, Gilmar foi expulso das fileiras do Exército em razão da fraude. Ele respondeu no Conselho de Disciplina da Força e foi condenado pelo Superior Tribunal Militar (STM). A partir de então, Dilcineth passou a receber pensão militar de R$ 5,6 mil graças a uma legislação que equipara as esposas de militares condenados e/ou excluídos das Forças Armadas às viúvas.

Denominado de “morte ficta”, o expediente permite que os familiares requisitem pensão do Estado, independente de qual crime os ex-militares praticaram para serem expulsos.

As Forças Armadas depositam esse tipo de pensão, por exemplo, a parentes de militares que foram condenados por tentativa de estupro e tráfico internacional de drogas, como é o caso do ex-sargento Manoel da Silva Rodrigues, preso com 39 quilos de cocaína em uma aeronave da Forças Aérea Brasileira (FAB) em 2019, na Espanha. No total, as pensões por “morte ficta” custam cerca de R$ 43 milhões por ano.

Esta reportagem faz parte da série Pensões Camufladas, da coluna de Tácio Lorran, que revela histórias exclusivas sobre esquemas de fraudes em pensões militares. Exército, Aeronáutica e Marinha desperdiçam milhões de reais em recursos públicos para custear a folha de pagamento de pessoas que não deveriam ganhar sequer um centavo das Forças Armadas. A coluna analisou dezenas de processos no STM, no Tribunal de Contas da União (TCU) e em tribunais federais ao longo de um mês.

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A controversa pensão por “morte ficta”

Documento da área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) cujo teor foi revelado em novembro pela coluna diz que as pensões por “morte ficta” estão sendo pagas sem o devido amparo legal.

Segundo a Unidade de Auditoria Especializada em Pessoal (AudPessoal), da Secretaria-Geral de Controle Externo do TCU, não há previsão expressa na legislação brasileira para o pagamento do benefício a parentes de ex-militar ainda vivo. Pelo contrário, o direito à pensão deveria nascer somente com o óbito do contribuinte.

A área técnica concluiu que a pensão por “morte ficta” das Forças Armadas é “obra de uma inércia interpretativa” e resulta de uma “interpretação anacrônica, contrária aos princípios constitucionais”.

“O pressuposto da ‘morte ficta’ pode ser visto como um estímulo à má conduta daquele militar que deseja se desligar das Forças Armadas, mas que não tem todos os requisitos para solicitar a reserva remunerada, a gerar situações que motivem sua exclusão”, assinala a AudPessoal.

O caso de Dilcineth e Gilmar se encaixa perfeitamente na contradição apontada pelo TCU. O casal cometeu um crime fraudando a pensão militar e, em seguida, apesar de serem condenado, voltaram a receber o benefício graças a um expediente considerado legal pelo Exército. Desde 2021, o militar expulso e sua esposa já ganharam R$ 240,1 mil, segundo levantamento feito pela coluna junto ao Portal da Transparência.

“É um benefício que confere maiores vantagens aos familiares do militar expulso, pois lhes garantem acesso ao sistema previdenciário militar antes da morte real do instituidor, em plena capacidade laboral, enquanto os militares da atividade somente deixarão pensão aos seus dependentes em caso de morte, após contribuírem durante toda a carreira militar”, prossegue a área técnica do TCU.

Dificuldades financeiras de casal motivaram fraude

Segundo depoimentos anexados aos autos, a fraude à pensão militar foi idealizada por Gilmar por causa de dificuldades financeiras. O militar queria sacar o seguro de vida – em torno de R$ 300 mil, de acordo com o denunciante –, além de receber pensão e auxílio-funeral. Dilcineth teria sido responsável por conseguir a declaração de óbito com terceiros, diz a denúncia.

Na época, segundo o denunciante, Gilmar vivia com os filhos que teve com Dilcineth, sendo três deles menores de idade. As condições de vida seriam precárias quanto à manutenção de alimentos, roupas e outras necessidades, diz o processo obtido pela coluna.

Em contato com a coluna, Dilcineth confirmou que Gilmar está vivo, mas indicou que ambos estão separados. Ela não quis comentar sobre a condenação. O ex-terceiro sargento do Exército não se manifestou.

O que diz o Exército

Em nota, o Exército explicou que Gilmar possuía mais de 10 anos de serviço quando foi expulso e, por isso, foi gerada a pensão militar em favor de sua esposa (morte ficta), conforme prescreve o parágrafo único do Art. 20 da Lei de Pensões, Lei nº 3.765, de 1960.

“É importante frisar que a perda do direito à pensão militar está enquadrada no art. 23 da Lei nº 3.765/1960, e não contempla o indeferimento por ocasião de crimes cometidos pela pensionista, exceto aqueles que derem causa ao óbito do instituidor”, complementa.

O Exército também explicou que a auditoria sobre as pensões militares é realizada tanto de forma física, com a adoção de medidas como a prova de vida e a atualização de documentos, como na forma contábil.

A Força acrescentou que todas as pensões são auditadas no memento da concessão por órgãos internos e externos, como o próprio TCU.

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