A “fábrica” e a forma(ta)ção militar (por Rubens Pierrotti Jr.)

A Academia Militar das Agulhas Negras é chamada pelos militares de “fábrica”, e você já vai entender por quê. Egressos da Escola Preparatória de Cadetes do Exército, os novos cadetes entram marchando na AMAN em coluna por um. Quatro anos depois, saem, de igual modo, com a espada de oficial. De fato, essas cerimônias lembram a linha de produção de uma antiga fábrica.

No imaginário popular, a formação do oficial de carreira da linha bélica é excepcional. Os vídeos institucionais, com cenários grandiosos da AMAN, impressionam. Mas será que é tudo isso mesmo? Depois de passar pela AMAN, como cadete e instrutor, posso lhe responder que não. Muito do que se vê nesses vídeos não passa de embuste. Senão, vejamos…

O currículo da AMAN é dividido em dois blocos: universitário e profissional. Isso já soa estranho. O ensino universitário, então, não contribui com a profissão? Dê uma olhada na crise de identidade do currículo da AMAN e tire suas conclusões. Da Física Quântica à Psicologia; da Geometria Descritiva à Economia. Cálculos matemáticos com diferencial e integral, sim, o cadete estuda lá. Os próprios militares criticam: “um oceano de conhecimento com um palmo de profundidade”.

Encaremos o óbvio. Essas matérias foram jogadas lá para equiparar a AMAN à graduação superior, porque o ensino essencialmente profissional é mais técnico (nível médio) do que acadêmico. Gastam-se cinco anos em tempo integral para o “bacharel em Ciências Militares” estar apto a ocupar postos de tenente e capitão. Entretanto, nos centros de preparação de oficiais da reserva (CPOR), onde se estudam apenas as disciplinas militares, em dez meses (com meia jornada diária), os tenentes temporários estão prontos para exercer as mesmas funções na tropa.

Certo é que a “fábrica” não está formando adequadamente o oficial, inclusive, importante que se diga, sobre os propagados valores morais. O exemplo (ou a falta dele) vem de cima. Um exército que até hoje nega os crimes de seus integrantes na Ditadura Militar, premia torturadores (e.g. promoção do coronel Ustra a marechal), homenageia ditadores (Escola Marechal Castello Branco), celebra o Golpe de 1964 (a Brigada de Infantaria Leve de Montanha é denominada Brigada 31 de Março).

E quando os militares queriam fazer você crer que isso era passado, a Polícia Federal descobre que eles novamente flertavam com o golpismo, da Intentona Bolsonarista de 8 de janeiro de 2023. Instaurar processos administrativos disciplinares contra os golpistas? Deixa quieto! Corregedoria para investigar e punir maus militares, para quê? Afinal, os desvios de conduta são “casos isolados”, não é mesmo?

Padecemos com um exército incapaz de assumir seus erros, com postura negacionista quando confrontado com seus problemas. Os exemplos são vários. Baseado numa história real, “Diários da Caserna: Dossiê Smart – a história que o exército quer riscar” oferece uma radiografia dos fardados e de vícios que precisam ser corrigidos na Força Terrestre. O livro tem provocado chiliques e críticas pesadas (sem contar ofensas) de colegas, como uma “biografia não autorizada dos milicos” (mormente, dos carreiristas e dos que temem perder privilégios). Essa gente só corrobora a necessidade urgente de reforma dos currículos das escolas militares.

 

(*) Coronel da reserva do Exército Brasileiro, advogado e escritor, autor do livro “Diários da Caserna: Dossiê Smart – a história que o exército quer riscar” (Ed. Labrador, 2024).

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