Dos 135 eleitores do novo colégio cardinalício que dentro de 15 a 20 dias serão chamados a eleger o novo Papa, 108 foram escolhidos por Francisco – um número que não tem paralelo com nenhum dos papados anteriores. E o que pode ser confundido com uma mera formalidade pode bem ser um dos maiores legados do argentino, já que muitos dos escolhidos provêm de dioceses e países improváveis, nomeadamente da Ásia e da Oceânia. Por detrás das escolhas, o objetivo foi claro: acabar com o perfil eurocêntrico do conclave que elege o Papa, aumentando assim as hipóteses de o próximo líder da Igreja Católica surgir de fora do Ocidente.
Esta “internacionalização”, que fez com que os cardeais nomeados por Francisco passassem a representar a larga maioria dos votos presentes num conclave (80%), foi, aliás, e naturalmente sem surpresas, alvo de acesas críticas por parte dos seus detratores, como o alemão Walter Brandmüller, que viram nas escolhas de Francisco uma evidentíssima “manobra ante europeia”. Este raciocínio ignora aparentemente que a Europa concentra apenas 24% dos católicos de todo o mundo, tendo deixado por isso de ser o seu centro de gravidade.
Contas feitas, quando Jorge Mario Bergoglio foi eleito 266.º pontífice, os cardeais eleitores da Europa representavam 56% do total. Esse peso baixou, entretanto, para 40% do total, com 53 eleitores (alguns dos quais com responsabilidades eclesiais noutros continentes), em benefício de África (18 cardeais eleitores), Ásia (24 eleitores) e Oceania (quatro). A América, por seu turno, está representada com 37 eleitores.
Para eleger um papa, são necessários dois terços dos votos, o que frequentemente obriga à repetição das votações (sinalizadas nestes casos com a fumaça negra). Com a recomposição operada por Francisco, boa parte destes votos naquele que será o 76.º conclave na história da Igreja virá das “periferias”, as tais que o Papa argentino dedicou o seu papado a chamar para o centro de Roma.
A votação é secreta, exclui os cardeais com mais de 80 anos de idade, e o conclave não pode realizar-se antes de decorridas duas semanas da morte do Sumo Pontífice, cabendo ao cardeal Camerlengo dirigir a Igreja durante o período de sede vacante e convocar os cardeais a Roma para a votação. Se a votação se prolongar para lá dos 12 dias, bastarão 51% votos para eleger o novo líder dos católicos.
Quando se soube do último internamento hospitalar do Papa, o jornal digital norte-americano Político sinalizou que, quando a sua saúde começou a deteriorar-se, o argentino apressou-se a chamar para cargos-chave no Vaticano nomes capazes de assegurarem a continuidade do seu papado. No dia 6 de fevereiro, antes de ser hospitalizado, Francisco prorrogou a permanência do cardeal Giovanni Battista Re como decano do Colégio dos Cardeais. O religioso já completou 91 anos e a sua saída era dada como assente, mas Francisco terá querido garantir que o próximo conclave é supervisionado por alguém capaz de defender o seu legado.
Já doente, Francisco repreendeu veementemente o vice-presidente norte-americano, J.D. Vance, que, tendo-se convertido ao catolicismo já adulto, invocara um princípio teológico de Santo Agostinho para justificar a política migratória de Donald Trump. Em causa estava o conceito Ordo Amoris, desenvolvido no século IV e que Vance usou para hierarquizar o amor: a Deus, em primeiro lugar, e só depois à família, à comunidade e à sociedade, por essa ordem. “O ato de deportar pessoas que, em muitos casos, deixaram as suas terras por motivos de extrema pobreza, insegurança, exploração, perseguição ou grande deterioração do meio ambiente fere a dignidade de homens e mulheres”, lembrou Francisco, numa carta dirigida aos bispos norte-americanos, para concluir: “O amor cristão não é uma expressão concêntrica de interesses que, pouco a pouco, se estende a outras pessoas e grupos.”
A Casa Branca, escreveu ainda o Político, reagiu com fúria à repreensão papal, aumentando assim a perspectiva de uma batalha altamente politizada pela sua sucessão. “Eles já influenciaram a política europeia, não teriam problemas em influenciar o conclave”, considerou àquele jornal um observador próximo da política do Vaticano, para quem a administração Trump procurará assegurar a eleição “de alguém menos conflituoso”.
(Transcrito do PÚBLICO)