Abracadabramarajá (por Gustavo Krause)

Em política, palavras e símbolos podem assumir dimensões mágicas. Principalmente quando são usadas no calor do clima eleitoral. A história está cheia de sugestivos exemplos.

Não custa recordar as eleições presidenciais de 1945, ocorridas oito anos após a ditadura estadonovista. Na época, os dois candidatos com chances efetivas de vitória eram o general Eurico Gaspar Dutra e o brigadeiro Eduardo Gomes.

O brigadeiro representava o novo. Já ostentava uma aura legendária de heroísmo marcada pelo episódio dos 18 de Copacabana (eram na verdade 12) e de esperança em relação aos novos tempos de liberdade e democracia que se descortinavam no horizonte político. Era apoiado pela UDN, partido que defendia o ideário liberal, congregava grande parte da elite pensante do país e se apropriava das inquietações de um Brasil urbano emergente. Era um candidato com charme e, teoricamente, com mais possibilidades do que Dutra.

Dutra, com seu ar carrancudo e destituído de maiores dotes estéticos, representava o velho regime de qual fora Ministro da Guerra e, depois, ao derrubá-lo, o seu próprio algoz. Curiosamente, tinha como base partidária o PTB de Getúlio, o ditador deposto, desde então recolhido em exílio voluntário na fazenda Itu (Município de Itaqui, RGS), e do PSD que, com o passar do tempo, transformou-se em escola política de pragmatismo e vocação para a conciliação e para o poder.

A opacidade do candidato, junto com o que representava, não estimulava previsões eleitorais otimistas. Pois bem, o brigadeiro, num arroubo retórico diante de entusiasmada plateia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, cometeu um erro de consequências desastrosas quando disse: “Não necessito, para me eleger, desta malta de desocupados que apoia o ditador Vargas”.

A frase teve um efeito devastador. Em Campinas, habilmente, Hugo Borghi decodificou-a para o povo num grande comício, imputando ao brigadeiro o que, mais tarde, soaria como uma sentença: “O brigadeiro disse que, para se eleger, não precisava dos marmiteiros desempregados”.

“Marmiteiro” teve um competente uso semântico e semiótico contra o candidato da UDN. Passou a ser sinônimo de povo rude, trabalhador, uma espécie de boia-fria e, ao mesmo tempo, constituiu-se no símbolo da campanha de Dutra.

O brigadeiro amargou uma derrota que se repetiria nas eleições de 1950.

No Brasil, ao se falar neste assunto, não se pode passar ao largo das artes demoníacas de Jânio Quadros, sem dúvida, o político que mais eficazmente manipula palavras e símbolos.

Aliás o ex-presidente se comunica como o eleitorado predominante com símbolos. Um símbolo para cada conceito

Para o conceito de autoridade usava a reprimenda dos bilhetinhos, como presidente, ou o estardalhaço das multas de trânsito, como prefeito de São Paulo.

Para o conceito de moralidade, a famosa vassoura. Para o conceito de identificação popular, Jânio dispunha de um arsenal de símbolos, que ia do sanduíche que comia ostensivamente nos comícios, após fartas refeições, passando pelo desalinho dos cabelos polvilhados de caspas produzidas, até a adoção de uma farda presidencial que fez sucesso na década de sessenta: o blujânio.

O prestidigitador Jânio Quadros ainda é personagem da vida política. E que personagem!

Em 89, a história pode se repetir. E como repetição é, inevitavelmente, uma farsa. Está na praça, estourando a boca do balão e os percentuais das pesquisas, um jovem bruxo chamado Fernando Collor, com impecável acabamento da mídia eletrônica.

O ex-governador de Alagoas, embora inconsistente como algodão-doce e empostado como galã de novela das oito, descobriu uma palavra mágica como combustível da campanha: marajá, que também é símbolo do clientelismo, do privilégio odioso, da mutretagem e da esperteza, expedientes que irritam o cidadão comum.

O candidato do PRN descobriu o filão.

E pelo menos, por enquanto é o xodó do eleitor e a tábua de salvação do oportunismo cego dos profissionais do poder.

Sua cintilante imagem de justiceiro dos tempos românticos, montado no alazão televisivo, tem conseguido seduzir uma parcela da população que pode, perigosamente, trocar a aparência pela essência.

É certo que falta muito tempo para o dia do juízo eleitoral. No entanto, corre-se o risco real de o eleitor gritar na urna a palavra mágica: abracadabramarajá! e sair de dentro dela um Presidente da República. Logo depois, quando o eleitor descobrir que o presidente é obra do feitiço, será tarde demais.

 

*Este artigo foi publicado na edição do Diário de Pernambuco de 25 de maio de 1989. O Primeiro turno foi disputado por 22 candidatos no dia 15 de novembro de 1989. Em abril, as pesquisas revelavam um empate técnico entre Brizola (PDT),13%, Lula (PT), 12% e Collor (PRN) 14%. Collor e Lula passaram para segundo turno com 30,47% e 17,18% dos votos válidos. A primeira eleição presidencial sob as regras da Constituição de 5 de outubro foi vencida por Collor com 53,03% e Lula com 46,97% dos votos válidos, em 17 de dezembro de 89. Na época, exercia o mandato de Vereador pela cidade do Recife. No primeiro turno votei em Aureliano Chaves candidato PFL e, no segundo turno, faço parte da lista dos votos em branco (1.793.224, 2,59% dos votos totais)

 

Gustavo Krause foi ministro da Fazenda 

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