Estabelecer estações permanentes no espaço, isto é, estruturas artificiais projetadas para a permanência humana fora da Terra, envolve muitos desafios. Um deles é o cultivo de alimentos em parâmetros completamente distintos dos que possibilitam a vida no ambiente terrestre, como a gravidade, a composição da atmosfera e a luz solar. Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e de outras instituições deram um importante e inédito passo nesse sentido, em 14 de abril deste ano, quando enviaram sementes de grão-de-bico e plantas de batata-doce roxa para o espaço em um voo suborbital da Blue Origin.
A iniciativa é da Rede Space Farming Brazil, uma parceria da Agência Espacial Brasileira (AEB) e da Embrapa no âmbito do Acordo Artemis, um programa da Nasa e do Departamento de Estado dos Estados Unidos que convida a comunidade internacional a realizar missões tripuladas à Lua para estabelecer uma base lunar permanente, servindo como trampolim para futuras estadias em estações espaciais e viagens a Marte. São 54 países signatários, incluindo o Brasil.
“O que a gente sabe é que é necessário conseguir crescer plantas se a gente quiser viver fora da Terra por muito tempo, porque é muito caro mandar materiais para o espaço”, diz Carlos Hotta, membro do Instituto de Química (IQ) da USP e um pesquisadores associados ao projeto.
“E ainda existe uma questão de saúde, psicológica e emocional, de evitar que a alimentação de astronautas seja apenas baseada em ração. Crescer e comer plantas é um bom motivador que pode aumentar a estabilidade emocional desses pesquisadores”, afirma o pesquisador.
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Voo suborbital da Blue Origin aconteceu em 14 de abril
Divulgação/Blue Origin2 de 5
Rede Space Farming Brazil conta com 56 pesquisadores de 22 instituições diferentes
Juliana Sussai/Embrapa3 de 5
Sarita Meireles e Larissa Vendrame, da Embrapa, analisam mudas da batata-doce BRS Anembé
Paula Rodrigues/Embrapa4 de 5
Sementes do grão-de-bico BRS Aleppo
Rogério Monteiro/Embrapa5 de 5
Batata-doce das cultivares Beauregard e Covington
Divulgação/Embrapa
De acordo com Carlos Hotta, toda a tecnologia desenvolvida para o fim de se estabelecer no espaço é ao mesmo tempo proveitoso para a vida na Terra, uma vez que impulsiona técnicas agrícolas inovadoras frente aos desafios cada vez mais frequentes causados por mudanças climáticas extremas.
“Se gente consegue crescer plantas num lugar tão difícil quanto o espaço, isso quer dizer que a gente vai desenvolver tecnologias para crescer plantas em lugares difíceis ou momentos difíceis aqui na Terra”, diz o pesquisador. A lógica é a mesma do resultado da corrida espacial e de outras pesquisas espaciais que desenvolveram equipamentos que a sociedade usa até hoje, como celulares, satélites, aspiradores de pó, micro-ondas e outros.
Voo suborbital
O voo suborbital da Blue Origin, empresa do bilionário Jeff Bezos, levou plantas de batata-doce das cultivares Beauregard e Covington, e sementes do grão-de-bico BRS Aleppo, desenvolvido por cientistas brasileiros nos programas de melhoramento genético da Embrapa. No voo, a batata-doce e o grão-de-bico ficaram expostos por quase cinco minutos à microgravidade (gravidade próxima da zero), uma condição que afeta a expressão de alguns genes.
A tripulação era inteiramente composta por mulheres, entre elas, a cantora Katy Perry e a noiva de Bezos, Lauren Sánchez. De acordo com a Blue Origin, o voo durou 11 minutos — ida até a borda do espaço e volta. O lançamento ocorreu às 8h30 no oeste do Texas (EUA), correspondente às 10h30 no horário de Brasília, em 14 de abril.
“A gente injetou um líquido que paralisa o metabolismo das plantas em alguns momentos da viagem. É como se fosse uma fotografia da planta naquele momento. A partir disso, podemos estudar os transcritos de quais genes estão ativos na planta ou não”, explica Carlos Hotta. “Isso permite a gente saber, por exemplo, como que a planta respondeu ao tempo em microgravidade.”
Segundo Alessandra Fávero, coordenadora da Space Farming e pesquisadora da Embrapa, a ideia é disponibilizar esse material para diversas formas de análise entre os 56 pesquisadores de 22 instituições diferentes da rede. “As sementes que foram no voo vão estar disponíveis para todo e qualquer tipo de experimentação, como pesquisas metagenômicas, genômicas, epigenômicas, ou análises morfológicas, citogenéticas e muito mais”, diz.
Os pesquisadores explicaram que outros países já conseguiram, por exemplo, plantar e recolher alface, tomate e morango no espaço para se alimentar. “Essas pesquisas estão em um estado mais avançado. Nada que chegue perto de fornecer alimento para sustentar toda uma tripulação, mas já é algo para dar um agrado para os astronautas, que pelo que eu entendo, é uma coisa extremamente importante”, afirma Hotta.
Batata-doce e grão-de-bico
No caso do Brasil, a batata-doce e o grão-de-bico foram escolhidos porque reúnem vantagens agronômicas e nutricionais, quando se consideram os desafios tecnológicos e científicos de cultivar plantas no espaço. Elas são espécies adaptáveis e resilientes, de rápido crescimento e fácil manejo, que conseguem se desenvolver bem em condições adversas, mesmo com o mínimo aporte de insumos ao longo do ciclo de produção.
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Batata-doce das cultivares Beauregard e Covington
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Sementes do grão-de-bico BRS Aleppo
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Grão-de-bico BRS Aleppo é a primeira cultivar brasileira a participar de experimento espacial
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Sarita Meireles e Larissa Vendrame, da Embrapa, analisam mudas da batata-doce BRS Anembé
Paula Rodrigues/Embrapa
“A batata-doce roxa é rica em carboidrato de alta qualidade e em antocianina, que é um antioxidante em situações de radiação”, comenta Alessandra Favero. “E é um alimento extremamente versátil, fácil de cozinhar, que pode ser consumido praticamente inteiro, porque as folhas e as raízes são ricas em proteína e fibras e, quando cozidas, elas podem ser consumidas.”
O grão-de-bico é outra planta rica em proteína, fibras e triptofano, aminoácido fundamental para a produção de serotonina e melatonina. “Tem como fazer maionese com grão-de-bico, massas, humus. É um alimento bastante consumido e apreciado”, adiciona Carlos Hotta.
“É uma dobradinha do arroz com feijão, que é um carboidrato e uma proteína, que é a base alimentar do ser humano”, compara a pesquisadora do Embrapa.
Para além de profissionais que viabilizam a agricultura espacial, a rede Space Farming também conta com chefes de cozinha para o fim da linha de produção, responsáveis por elencar possíveis receitas a partir dos alimentos produzidos no espaço. O premiado chefe brasileiro Jefferson Rueda, por exemplo, integra a rede para estabelecer níveis de qualidade dos alimentos para consumo e definir as formas como eles serão apreciados.
Formas de cultivo
Os locais desafiadores para o desenvolvimento agrícola, tanto no espaço (ambiente inóspito) quanto na Terra (a partir das mudanças climáticas), motivam linhas de pesquisa para criar sistema autossustentáveis de plantação de alimentos. De acordo com Alessandra Favero, é inviável financeiramente enviar com frequência ao espaço insumos agrícolas como sementes e fertilizantes, o que incentiva a implementação do cultivo fechado ou indoor.
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Esse tipo de cultivo é uma forma de crescer plantas em um espaço pequeno, com uso muito limitado de água e sem o uso de de fungicidas, inseticidas ou herbicidas, para controlar o desenvolvimento da planta perto do local de consumo. Para isso, as plantas têm que estar adaptadas e, por isso, o melhoramento genético é buscado por meio de viagens suborbitais, como a que aconteceu em 14 de abril.
“A planta tem que ser mais eficiente no uso de água e energia e tolerante à radiação. A partir de toda a parte de iluminação artificial, fertilização, água, que entra e sai do sistema, a planta tem que entrar e voltar tratada. É um sistema bioregenerativo”, revela Alessandra Favero.
O professor Carlos Hotta explica que a vantagem do cultivo fechado é a segurança alimentar que esse sistema pode trazer um dia para a Terra. “Nós estamos em um cenário cada vez mais imprevisível, mas uma coisa certa é que a frequência de eventos climáticos extremos vai aumentar, e uma maneira da gente garantir alguma segurança alimentar é crescer as plantas num local totalmente protegido”, diz.
Uma segunda hipótese é pesquisar maneiras de acelerar o ciclo de plantio e colheita das plantas. “Em eventos extremos, como períodos de estiagem absoluta e outros de chuva substancial, a janela de oportunidade para crescer começa a diminuir. Então, a gente conseguir manipular esse processo nas plantas pode também ser uma chave para segurança alimentar”, diz o pesquisador da USP.
“Eu gosto de falar que esse é o começo. A gente tem a perspectiva de experimentos muito mais interessantes no futuro, para um dia crescer plantas por mais tempo no espaço, como na Lua ou em Marte. Parece um sonho mesmo, um produto de ficção, mas aos poucos nós vemos que pode ser algo tangível.”