A utilidade da alfaiataria (por Miguel Esteves Cardoso)

É um desperdício ver as fotografias do Met Gala para lamentar os excessos da nossa sociedade.

Enquanto os passarinhos se põem em bicos de pé para mostrar a cauda e o canto, e a Primavera puxa por todas as plantas, como se pode ser severo com as celebridades que estão horas e dias a preparar-se para dar nas vistas?

Vejo criancinhas a brincar aos crescidos, só que, desta vez, a vingança é total: desta vez, os orçamentos também são crescidos, e podem vestir-se como quiserem.

É uma pena que a experiência de ir a um alfaiate ou a uma modista seja cada vez mais inalcançável. Aquilo que fazem – e que está gloriosamente patente nas fatiotas do Met Gala – é uma coisa antiquíssima, que todos fazemos: tentam esconder os nossos defeitos e puxar pelas nossas qualidades.

A alfaiataria é democrática. Parte, com razão, do princípio de que todos somos diferentes. Mas depois tenta disfarçar as diferenças de que não nos orgulhamos, e realçar aquelas que nos agradam. Não nos tenta enfiar numa criação original, como se faz na alta-costura: adapta e, sobretudo, ouve o que diz o cliente, o destinatário daquela roupa.

No Met Gala gosto de ver o que fizeram com as pessoas mais gordas, mais magras, mais baixas, mais altas, mais velhas, mais novas, mais apagadas e mais banais: puxaram por elas. Deram-lhes beleza, segurança, coragem, originalidade. Usaram todos os tecidos e todas as cores, todos os cortes e todas as decorações. E os clientes fizeram o que os seres humanos sempre fizeram: engalanaram-se e, depois do trabalho todo que isso dá, exibiram-se.

Quem está em casa a ver as fotografias pode apreciar esse trabalho, tanto o bem-feito como o malfeito, sabendo que é ele o verdadeiro destinatário daquelas imagens: o público.

O exagero e o espalhafato não são apenas gostos humanos, desde os tempos da criancice: os insectos e os peixes também participam. Aquilo que não têm – até porque não precisam – é um tesouro que só nós temos: os alfaiates.

(Transcrito do PÚBLICO)

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