Eleições 2024: quem venceu foi a pobreza (por Felipe Sampaio)

Sem desmerecer o princípio democrático da pluralidade de ideias e ideologias, não custa lembrar que (pelo menos, teoricamente), quando o pensamento de esquerda sai enfraquecido de uma eleição, os pobres perdem e a pobreza vence. Ou seja, independentemente de quais partidos cresceram nas eleições de 2024, não há o que festejar se a esquerda tiver encolhido.

Não há exagero nessa afirmação se considerarmos o significado tradicional do que chamamos de esquerda. Trata-se daquele campo de ideias democráticas que alerta, enfrenta e propõe soluções para as diferentes formas de desigualdade social, não só no que se refere aos seus sintomas, mas, principalmente, a suas causas (e seus causadores).

No caso de eleições municipais, a fronteira entre esquerda e direita fica meio difusa, principalmente nas cidades menores. Isso é de se esperar porque, por um lado, qualquer prefeito entrega infraestrutura e serviços básicos, seja ele de esquerda ou direita. Por outro lado, no nível do município o assistencialismo e as obras de ocasião se confundem com o espírito verdadeiramente inclusivo das políticas públicas.

O prefeito socialista reeleito do Recife, João Campos,  acertou na mosca (Roda Viva, 28/10/24), ao chamar a atenção para as discussões que se desenrolam, por exemplo, em torno da educação: “Um debate focado em assuntos polêmicos que em nada contribuem para melhorar a qualidade e o acesso dos mais pobres ao ensino público”.

A fala de Campos nos remete ao indiano Amartya Sen, em seu premiado livro “Desenvolvimento Como Liberdade” (1999).  Nas palavras do Nobel de Economia, “Quanto mais inclusivos forem a educação básica e os serviços básicos de saúde, maior será a probabilidade de que os pobres tenham uma chance superar a penúria”. Isso é assunto para os prefeitos e é assunto para a esquerda.

Sobre isso, o ex-presidente da República Tcheca, Vaclav Havel, já dizia que “mesmo os partidos progressistas e as instituições democráticas, só funcionam bem quando são expostos à crítica, em um ambiente pluralista”. Nesse sentido, os cidadãos já participam mais diretamente da administração no âmbito municipal, até porque o nível de governo mais próximo da população no dia a dia é a prefeitura mesmo. Ainda assim, cabe lembrar que os governos à esquerda são, por definição, mais participativos do que os demais.

Contudo, quando fragmentamos excessivamente e polemizamos o debate sobre os vieses da desigualdade, a sociedade civil organizada e os partidos à esquerda acabam se distraindo do verdadeiro enfrentamento do modelo econômico concentrador e excludente, antes definido como liberal, que passou a neoliberal, evoluiu para ultraliberal e agora se apresenta como anarcoliberal.

Veja como é curiosa a situação das eleições para presidente nos EUA. As campanhas ficaram tão falaciosas que o eleitorado negro masculino agora vota em Trump. Os republicanos convenceram os homens negros de que o desemprego é culpa da imigração de latinos que, segundo Trump, teria sido afrouxada pela gestão que Kamala Harris – mulher negra – representa. Pura cortina de fumaça.

Por isso, quando se diz, com certo ar de satisfação, que a esquerda saiu perdendo nas eleições municipais deste ano, é preciso entender que não foi Lula, nem o PT, quem perdeu (tampouco Boulos ou o PSOL). Foram os pobres, para variar. E, com eles, a sociedade como um todo, a democracia, o meio ambiente.

 

Felipe Sampaio: cofundador do Centro Soberania e Clima; chefiou a assessoria do ministro da Defesa; dirigiu o sistema de estatísticas no ministério da Justiça; foi secretário executivo de segurança urbana do Recife; membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; ocupa a chefia de gabinete da secretaria-executiva no Ministério do Empreendedorismo.

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