Trump: o projeto de uma tirania (Por Jorge Almeida Fernandes)

A principal preocupação dos “pais fundadores” que conceberam a Constituição americana não era criar uma democracia radical mas impedir a emergência de um regime tirânico. Daí o sistema de “pesos e contrapesos” e as muitas salvaguardas que visavam proteger as minorias e dar-lhes meios de resistir a uma eventual tirania da maioria. Tinham, de resto, uma concepção elitista da democracia.

Mas tão hábil modelo ameaça agora facilitar a tirania de uma minoria. A principal manifestação deste efeito é a deriva do Supremo Tribunal (Supreme Court), o tribunal constitucional. A partir de 2020, foi capturado pelos republicanos. Primeiro, os senadores republicanos bloquearam durante um ano a nomeação de um juiz por Barack Obama. Uma vez eleito, Donald Trump teve a oportunidade de desequilibrar decisivamente a composição do tribunal: seis juízes republicanos e três democratas. E são vitalícios.

A ordem constitucional revela-se muito vulnerável. Se Kamala Harris vencer as eleições de terça-feira, Trump e os republicanos lançarão uma ofensiva jurídica – e provavelmente também nas ruas – para bloquear a certificação do resultado eleitoral. Não se sabe o que acontecerá quando o Congresso se reunir para certificar o resultado. Se a disputa for parar ao tribunal constitucional, como aconteceu no caso da Flórida nas eleições de 2020, tudo é possível.

O próprio falhanço da tentativa de anulação do resultado eleitoral de 2000 convenceu Trump e os republicanos de que, com melhor organização, é possível inverter o resultado das eleições. Estão desde já a preparar o terreno para não terem de improvisar à pressa um golpe depois da derrota.

Por fim, se os democratas não dominarem as duas câmaras do Congresso (o que parece impossível), Kamala Harris verá o seu programa legislativo largamente bloqueado. O tribunal constitucional encarregar-se-á do resto.

A campanha de Trump atingiu nas últimas semanas um inaudito grau de delírio. Fala em vingança e promete destruição. Anuncia uma deportação maciça dos imigrantes ilegais. Terá o projeto de colocar o Departamento da Justiça sob sua alçada e extinguir o da Educação. Quer depurar o aparelho de Estado e recrutar alguns milhares de funcionários “leais” à sua pessoa.

Promete aos seus fanáticos “erradicar os comunistas, os marxistas, os fascistas e os arruaceiros da esquerda radical, que vivem como vermes nos confins do nosso país, que mentem e votam e falsificam as nossas eleições”. Os democratas são os “inimigos do interior” contra os quais serão usados todos os meios, inclusive o recurso ao exército, ao abrigo do velho “Insurrection Act”. Não será assim tão simples, já que, entre as instituições americanas, as Forças Armadas parecem ser a mais sã.

Se vencer a eleição, Trump dá a entender que derrubará todos os obstáculos aos seus projetos. A palavra fascista anda em todas as bocas: “O fascismo americano do século XXI”. É natural. Alguns autores usam-no à falta de uma expressão adequada para o processo de corrupção da democracia americana. Por outro lado, o discurso de Trump faz evocar trágicas reminiscências do século XX, as mais próximas de nós. Os Estados Unidos “como um sonâmbulo a caminhar para a ditadura”, diz a republicana Liz Cheney, que passou a apoiar Harris.

O termo fascista exprime a indignação moral mas não me parece o mais adequado. Ao contrário dos fascismos, Trump não tem um pensamento político articulado nem um programa político. O seu programa é o próprio Trump. E há contradições entre a extrema-direita reacionária americana e os fascismos. Uma questão central é a concepção de Estado.

Por trás de Trump está a “elite” do Partido Republicano, que conta servir-se do ex-presidente para reconquistar o poder e nele se eternizar. Essa “elite” está disposta a tudo. E tem um programa de “revolução conservadora”, que é o “Project 2025”, elaborado pela Fundação Heritage.

O seu coordenador, Paul Dans, antigo membro da Administração Trump, resume-o em poucas palavras: “O governo federal é um monstro, instrumentalizado contra os americanos e os valores conservadores.”

Distinta é a concepção fascista, que visa “a subordinação absoluta do cidadão ao Estado”. Substituiu o capitalismo liberal por um capitalismo e uma economia subordinados ao Estado. Esclareceu há tempos Emilio Gentile, um dos grandes historiadores do fascismo: “A democracia não está em risco por causa do fascismo que já não existe. Hoje, o perigo é o suicídio da democracia.” É o que se passa na América, graças a uma parte da sua elite política.

Mais adequado me parece o conceito de tirania. O problema da tirania foi largamente discutido na Grécia Antiga e, em particular, por Aristóteles. Significava um governo arbitrário e ilegítimo não apenas por um só homem, mas também por uma parte do povo ou até por uma maioria. A tirania era uma situação excepcional, a não confundir com outras formas de autoritarismo ou despotismo.

É útil reler um texto que o filósofo João Maria de Freitas Branco publicou neste jornal no fatídico dia 6 de Janeiro de 2021, “USA a caminho da tirania”.

Donald Trump está a fabricar um sistema tirânico em proveito da oligarquia republicana, que sabe que o “trumpismo” é uma excepção cujos frutos sonha colher. O preço seria devastador para os Estados Unidos e para o mundo. Mas Donald Trump ainda não venceu e também os democratas estão prevenidos e não serão apanhados de surpresa como em 2021. Aguardam-se dias alucinantes.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

Adicionar aos favoritos o Link permanente.