Vida de músico nunca foi fácil

Os pés dançam, desafiam as ruas de pedras de Salvador, obedecem aos batuques que brotam da banda. O som ricocheteia nas paredes das casas, invade as janelas. Alguns olhares menosprezam o cortejo – e nem se apercebem que o corpo é refém do balanço. No espírito dos pretos e pardos que tocam ou bailam, navega um sentimento de liberdade, pois não há corrente que aprisione a música.

Estamos na Salvador de 1850. O cortejo era sintoma de uma cidade partida. Havia a música virtuosa, profissional, que habitava igrejas, velórios e festas bem vestidas. E a música dos pretos e pardos cativos ou libertos que ocupava as esquinas. A música de dentro e sua devoção à Europa; brancos e pardos a maioria dos músicos. A música de fora e sua reverência ao presente, embaralhando as harmonias indígenas, africanas e europeias com modinhas, cantos e lundus.

Em seu artigo “Músicos negros no tecido social de Salvador na primeira metade do século XIX”, a mestranda de História Social da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Marcele da Silva Moreira narra o contexto social e musical no período. E cita a importância de Manuel Raimundo Querino e sua obra “Artistas Baianos”. Ele foi o primeiro intelectual brasileiro a registrar a contribuição de povos africanos para a cultura brasileira. Evidentemente, foi invisibilizado pela academia sudestina.

Segundo a autora, a diferença entre esses dois cenários revela-se, por exemplo, na festa da padroeira da ordem franciscana, Santa Isabel de Portugal. Em quatro de julho de 1835, a música na igreja foi regida pelo professor Damião Barbosa de Araújo, que recebeu 218 mil réis. Mas o povo também merece música. Bandas de africanos ficaram responsáveis pela “música da porta”. O grupo conduzido pelo mestre Manoel José d ́Etre recebeu 30 mil réis.

Damião Barbosa de Araújo foi um homem pardo que serviu no 1º Regimento de Infantaria de Linha da Cidade da Bahia por mais de nove anos. Com a chegada da família real em 1808, viajou ao Rio de Janeiro e participou da Brigada da Real Marinha. Depois tocou na orquestra Real Capela. De volta à Bahia, transformou-se em mestre de capela da Catedral de Salvador. Era a mobilidade social que a música oferecia.

Manoel José d’Etre foi um ex-escravizado, barbeiro, sangrador e regente como seu escravizador, José Antônio d ́Etre. Formou uma banda de barbeiros e multiplicou seus conhecimentos com outros libertos. As bandas de músicos barbeiros acompanhavam as procissões ao som de trompas, clarinetes, pífanos, flautas, caixas, zabumbas, rabeca. Viver somente de música era impossível, ainda que, com frequência, suas apresentações fossem remuneradas. A banda e uma outra profissão: no jogo da sobrevivência, pardos e pretos jogam em mais de uma posição.

A chegada da família real estabeleceu a formação das bandas militares. A partir de 1830 a Guarda Nacional e Municipais Permanentes incentivam a criação de grupos musicais por todo o país.  Segundo José Ramos Tinhorão, com a “valorização das bandas da Primeira Linha e da Guarda Nacional, centenas de músicos de origem popular encontraram a oportunidade de viver de seu talento”.

No trabalho, Moreira cita o estranhamento de visitantes europeus ao encontrarem esses músicos pelas ruas da cidade. Aos seus ouvidos, aquilo não era música, mas uma bagunça. Aquela bagunça era uma liberdade fugaz que refletia uma sociedade organizada para oprimir pretos e pardos e manter as violências da escravidão.

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