Reflexões sobre a vitória trumpista (Por Creomar de Souza)

Historiador de formação e convidado pela Embaixada dos EUA para acompanhar as eleições americanas de 2016, Creomar de Souza é fundador e CEO da Dharma Political Risk and Strategy, hub de análise de risco político situado em Brasília.

A vitória acachapante de Donald Trump nas eleições americanas desponta como marcador de uma dinâmica cada vez mais central em embates eleitorais ao redor de todo o mundo, cuja característica mais visível é a rejeição do status quo político.

Em um mundo que se move na velocidade de um clique, parece que não há mais espaço para pensar a política em termos de processos, fluxos e tomadas de decisão, principalmente quando os resultados desses processos são percebidos de maneira imediata pelo eleitorado.

Em termos práticos, no lugar da construção de lógicas discursivas ou mesmo de manifestações em defesa de valores abstratos para o eleitor médio – como a democracia –, reina no mundo hoje uma urgência por soluções expressas tanto para problemas estruturais quanto cotidianos.

Lastimavelmente, essas soluções, quaisquer que sejam, por sua vez, não precisam ter um lastro factível com a realidade. Pelo contrário: precisam ser transmitidas com um grau impecável de clareza e simplicidade por interlocutores políticos.

Cada vez mais, especialmente em momentos críticos, a mera firmeza com que se fala é suficiente para aplacar ansiedades, conquistar mentes e angariar apoios.

No caso da eleição norte-americana mais recente, da distribuição pública de montantes tresloucados de dinheiro via “loteria eleitoral” pelo empresário Elon Musk à fábula repetida à exaustão por Trump de que imigrantes se alimentavam de animais de estimação, logo se tornou claro um objetivo velado da campanha republicana: transformar a corrida eleitoral em um plebiscito sobre o ex-presidente.

E se a lógica circense teve óbvios componentes diversionistas, tais ações e narrativas funcionaram bem tanto para cimentar maiores níveis de coesão interna entre apoiadores já convencidos do momento de embate apocalíptico no qual o país se inseria quanto para viabilizar a monopolização do debate eleitoral, o que, inadvertidamente, levou os democratas a optarem por uma estratégia muitíssimo arriscada: a de imputação de inferioridade moral, intelectual e emocional contra os eleitores de Trump.

Como uma espécie de armadilha feita por um grão-mestre de xadrez contra um rival inexperiente, se consolidou uma lógica em que ataques contra Trump envolviam também ataques contra seus apoiadores.

Para os democratas, o problema é que mesmo que essa não tenha sido a intenção original, não foram poucas as situações em que parecia emergir certa soberba moral da campanha de Kamala Harris e de seus apoiadores quando esses se referiam aos eleitores de Trump.

O mais crítico desses momentos emergiu quando o presidente Joe Biden, ao tentar refutar comentários racistas de um apoiador de Trump sobre Porto Rico, vociferou: “O único lixo que vejo flutuando por aqui são os apoiadores dele [Trump]”.

Tal ação, assim como outras – tais como a aposta de que o apoio de artistas, especialmente músicos de notoriedade, em comícios daria tônus popular à campanha de Harris – surtiram efeito adverso, sedimentando a ideia de que os democratas estavam distantes das questões reais de pessoas comuns.

Aos poucos, com a transformação dos comícios de Harris em uma procissão eterna de celebridades declarando votos em seu favor, se tornou nítido que essa sensação de distanciamento foi se apensando.

Por óbvio, celebridades e bilionários também declararam apoio a Trump. Todavia, agora é claro que a campanha do presidente eleito foi mais eficaz em apresentar essas figuras como pessoas comuns.

Tal percepção é tão verdadeira que os dados revelados via apuração mostram que Trump não só venceu no voto popular e no colégio eleitoral, tal como os republicanos terão vitórias massivas no Congresso – no momento de escrita deste texto, o domínio do Senado já lhes é garantido.

Esse movimento caracteriza uma espécie de salvo-conduto dado pela maioria do eleitorado para que o eleito quadragésimo sétimo presidente dos Estados Unidos possa se mover na direção de fazer mudanças em um país marcado por contradições tão relevantes quanto sua força quase hegemônica no sistema internacional.

Se os Estados Unidos representam tendências culturais e comportamentais que se reproduzem mundo afora, é possível dizer que os sucessos da direita antissistema representada por Trump podem se repetir em território brasileiro em 2026.

Da mesma maneira, os fracassos e dificuldades de internalização das lições apreendidas alhures – tais como a eleição presidencial de 2024 – ou internamente, como as municipais recentemente realizadas aqui, colocam pressão em uma esquerda que segue se comunicando de forma analógica com um eleitorado que é a cada dia mais digitalizado.

A questão que fica para o atual governo brasileiro, Lula e seus assessores é se há tempo para visualizar, processar e internalizar o número considerável de lições que o triunfo de Donald Trump elucida para o que se faz e como se faz comunicação de massas em período eleitoral.

Diante da impossibilidade de listar todas elas, de maneira sumarizada, se faz importante dizer que eleições, mesmo na segunda década do século XXI, devem tratar mais de comida e emprego, particularmente diante do crescimento incessante das insatisfações, medos e inquietudes das pessoas comuns sobre estes.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.