A esquerda está morta. Ressuscitará? (por Francisco Mendes da Silva)

Donald Trump e Kamala Harris utilizaram duas estratégicas eleitorais clássicas. Ambas testadas pelo tempo, ambas aparentemente com potencial vencedor. Se medíssemos a campanha pelo termómetro das sensações, todas na vizinhança da imprevisibilidade e do sobressalto, ela parecia um evento irreconhecível. Na verdade, foi uma campanha bastante típica.

Trump subordinou quase toda a sua conversa (sobre as guerras comercias, a imigração, as políticas climáticas, a guerra na Ucrânia à estratégia de ativar o ressentimento dos americanos perante o estado da economia. Melhor dito: o ressentimento da larga maioria dos trabalhadores americanos perante o impacto do estado da economia nos seus padrões de vida.

Não há nada politicamente mais eficaz para um “challenger” do que perguntar ao eleitor se a sua vida lhe custa mais a ganhar do que quando o incumbente tomou conta do poder. Em caso de resposta afirmativa, o eleitor médio até pode reconhecer a complexidade dos motivos que justificam as provações que atravessa, mas a sua reação política instintiva não é a de massajar o intelecto com a sofisticação dos problemas – é a de se recolher ao conforto da objetividade: se os bens essenciais custam mais do que custavam, então mais vale confiar o governo a outros.

Kamala Harris optou por um outro ângulo, igualmente clássico: a diabolização do inimigo. À partida, ninguém podia dizer que não era uma estratégia plausível. Trump faz tudo para ser odiado, com a sua violência verbal, o seu narcisismo autoritário, a sua desconsideração pela lei e pelas regras básicas da decência democrática (essa relíquia). Harris aceitou de bom grado que, para muita gente, a sua única vantagem era o facto de ser a candidata alternativa a Donald Trump. À conta disso, conseguiu um caleidoscópio inaudito de apoios, que agregava neocons do tempo de Bush Jr. a neossocialistas como Ocasio-Cortez.

Porém, uma chave possível para entender o resultado da eleição está na compreensão do que estas opções tiveram de ilusório e contraditório.

Apesar da vertigem conflitual e agressiva de Trump, a sua mensagem fundamental tinha uma natureza positiva. Era uma mensagem sobre a promessa de um novo período áureo da América (a “America Great Again”).

Em contraste, a mensagem essencial de Harris, apesar do seu apelo unificador, era construída pela negativa. Tudo se resumia ao terror da reversão dos direitos e das conquistas sociais, o desmantelamento da democracia e o demais a que Donald Trump se atreveria mal se apanhasse com o poder outra vez nas mãos. A mensagem de Trump era sobre Trump; a mensagem de Harris também era sobre Trump.

Em condições normais, tenderia sempre a ganhar o candidato que se tivesse colocado na posição em que Donald Trump se colocou. A história destes momentos eleitorais charneira mostra que a vantagem está habitualmente do lado dos candidatos que vendem a promessa dos amanhãs que cantam. Custa olhar para Trump como o candidato aspiracional? Claro que custa. Mas o seu negativismo agressivo era reservado somente para a perspectiva de vitória dos seus adversários. Em boa verdade, Harris era a candidata que apenas queria evitar as más notícias; Trump é que era o candidato que desejava acelerar as boas notícias. Era o candidato da nostalgia, mas também o que – como Obama em 2008 – representava o desejo disruptivo de mudança.

Os democratas apostaram, todavia, que estas eleições não decorreriam em condições normais. Porque o candidato republicano não era um candidato normal. Não os condeno. Nas presidenciais de 2020, Donald Trump só não teve a maior votação popular de sempre porque nesse mesmo ano a de Joe Biden foi ainda maior, o que mostrou que a recusa de Trump talvez fosse, de facto, a força motriz mais determinante do comportamento eleitoral dos americanos. Aliás, sublinhando a tendência, nas intercalares de 2022 os republicanos foram mais punidos onde os seus candidatos eram mais identificados com o trumpismo.

Só que, em 2024, a normalidade das circunstâncias foi mais forte do que a anormalidade do candidato republicano. E, portanto, o candidato vencedor foi o que disse que queria a América a andar para a frente (ainda que possivelmente em direcção ao abismo), não a candidata que só prometia impedir que a América andasse para trás. Sejamos sinceros: como intérprete da “promise of America”, Kamala Harris não se revelou o Barack Obama ou o Ronald Reagan de que precisávamos.

Convém não ignorar as conclusões que daqui irradiam para toda a política ocidental. Após a guerra civil em que as direitas se digladiaram na última década, o regresso vitorioso de Donald Trump consagra o inequívoco domínio da direita iliberal. A direita do nativismo, das guerras culturais, da russofilia, da desvalorização da NATO, da subjugação das instituições do Estado de direito à arbitrariedade do poder executivo. Economicamente, é a direita do protecionismo, das tarifas alfandegárias e da desglobalização (a que por cá o Partido Comunista Português chamaria “política patriótica e de esquerda”).

A direita dita tradicional – a direita que foi construindo uma noção de ordem pública a partir das ideias de liberdade e de limitação do poder político –, essa vai ter de viver algum tempo na expectativa, perante a urgência de se reorganizar.

Mas, curiosamente, a eleição de Trump também dá razão histórica à esquerda, no sentido em que valida a ideia de que a função primordial da política é a de dar resposta aos ressentimentos antielitistas e às aspirações de classe dos povos.

Há dez anos, durante a crise financeira, a esquerda ocidental vivia obcecada com o tema da desigualdade. Thomas Piketty, o novo Marx, era o seu herói intelectual. O excesso de austeridade, avisavam-nos, acabaria por conduzir à descrença na democracia.

A década que se seguiu foi a extraordinária crónica de um suicídio. Os “ajustamentos” fizeram o seu caminho. E a esquerda, sem alternativa, foi em busca de novas linhas de divisão, que encontrou no campo minado das “teorias críticas”. Substituiu as categorias de classe, comunidade e igualdade pela categoria única da “identidade”. Substituiu o optimismo da inevitabilidade histórica pelo pessimismo da culpa estrutural do Ocidente.

Com isso, ficou sem nada de útil para dizer. Entregou tudo à direita, que é hoje proprietária das duas grandes categorias políticas aspiracionais: a liberdade individual e a luta de classes. A esquerda está morta. Alguém terá de a ressuscitar.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

Adicionar aos favoritos o Link permanente.