Ana Paula Minerato celebra a cultura negra, mas não os negros

Eu estava em um samba no subúrbio do Rio de Janeiro, cercado pela alegria pulsante de novembro, mês da Consciência Negra. A música, a roda, os corpos em movimento — tudo ali celebrava nossa ancestralidade. No entanto, o que me chamou atenção foi um casal que se posicionou ao meu lado: ele, negro; ela, branca. Ela destoava da maioria, mas isso não parecia importar até o momento em que, sem disfarce ou constrangimento, ela segurou firmemente a bolsa ao me olhar. Ela estava em um samba, com um namorado negro, mas reproduzia o reflexo do medo, aquele reflexo aprendido que nos desumaniza.

Olhei para ele, imaginando se já havia percebido o peso do olhar que recaía sobre nós todos os dias. Será que ela pensou, por um segundo, que o mesmo gesto podia ser direcionado a ele em outros lugares? Não resisti. Virei-me para ele e, com a seriedade de quem entrega um aviso, disse: “Corra!” – mencionando o filme de suspense e terror psicológico do norte-americano Jordan Peele. Ele sorriu, sem entender. O gesto dela era um retrato fiel: ser amigo, familiar ou parceiro de uma pessoa negra não te isenta de ser racista. O racismo opera em reflexos, e a consciência deve ser cultivada, mesmo no samba.

O amor pela cultura negra não é sinônimo de respeito ao povo que a criou.

O episódio envolvendo Ana Paula Minerato, ex-musa da Gaviões da Fiel e apresentadora, mais uma vez nos força a encarar uma dura realidade: o racismo, embora frequentemente denunciado, ainda é corriqueiro, velado e reproduzido em diversos espaços. Em áudios vazados, Minerato teria proferido falas racistas que rapidamente causaram sua expulsão da escola de samba e a demissão na Band FM. Mas, enquanto muitos se escandalizam com o ocorrido, é essencial ir além do caso individual e refletir sobre o que ele representa.

Ana Paula Minerato foi durante anos exaltada como símbolo de beleza e encanto no Carnaval. Musa de uma das maiores agremiações do país, ela desempenhava um papel central em um dos mais importantes eventos culturais brasileiros, profundamente enraizado na ancestralidade e na resistência negras. Mas, paradoxalmente, é também no Carnaval — espaço de exaltação da cultura afro-brasileira — que vemos frequentemente a apropriação sem o devido respeito aos negros. Esse episódio expõe, mais uma vez, uma dinâmica comum: o amor pela cultura negra não é sinônimo de respeito ao povo que a criou.

O cabelo crespo, citado de forma pejorativa nos áudios, simboliza muito mais do que estética. Ele é, desde sempre, uma afirmação de identidade, um marco de resistência. Em um mundo que historicamente impôs padrões brancos como únicos aceitáveis, o ato de usar o cabelo natural se torna político, desafiador e carregado de significado. É inadmissível que, ainda hoje, ele seja alvo de comentários que tentam diminuí-lo ou ridicularizá-lo.

Essas falas não são apenas ofensivas; elas carregam o peso de séculos de desumanização. O cabelo das pessoas negras, sua pele, seus traços, suas expressões culturais — tudo já foi alvo de tentativas de anulação. Quando Minerato faz comentários depreciativos, ela não só reforça esse histórico, mas também valida que tais ideias ainda encontram eco em nossa sociedade. Por mais que seu caso tenha vindo à tona por conta de um vazamento, a verdade é que essas falas são corriqueiras. Neste momento, em algum lugar, alguém as está reproduzindo sem qualquer receio, porque, para muitos, o racismo é algo normalizado.

Esse episódio nos faz lembrar de outras situações que se repetem no Brasil. Como país, somos rápidos em celebrar o samba, a capoeira, o afoxé e tantas outras manifestações afro-brasileiras, mas relutantes em garantir dignidade e respeito ao povo negro. É a velha lógica colonial em que os frutos são apreciados, mas o reconhecimento de quem os plantou é negligenciado.

A demissão de Ana Paula Minerato pela Gaviões da Fiel e pela Band FM foi um ato importante, mas insuficiente. O racismo não será desmantelado apenas com punições pontuais. Precisamos de uma sociedade comprometida com a educação antirracista, com a valorização genuína das vidas negras e com o combate às narrativas que perpetuam estigmas. A polícia e o Ministério Público devem investigar e fazer chegar à justiça.

Que este caso sirva como um alerta. Não basta admirar a cultura negra; é preciso respeitar os negros. Isso significa ouvir nossas vozes, reconhecer nossos direitos, e lutar contra o racismo em todas as suas formas — das explícitas às mais sutis. Cada comentário depreciativo que passa sem contestação é um tijolo a mais no muro que separa a sociedade brasileira de uma convivência verdadeiramente justa e igualitária.

Enquanto comemoramos o legado negro em nossas tradições, que também nos comprometamos a desconstruir os preconceitos que teimam em sobreviver. Assim, talvez um dia possamos realmente celebrar o Carnaval — não apenas como uma festa, mas como um espaço de igualdade, respeito e orgulho de nossas origens.

A primeira escola de samba oficialmente reconhecida no Brasil foi a Deixa Falar, fundada em 12 de agosto de 1928 no bairro do Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. Criada por grandes nomes como Ismael Silva, Alcebíades Barcelos, Nilton Bastos, Edgar Marcelino dos Passos, Osvaldo Vasques e Sílvio Fernandes, a Deixa Falar nasceu da criatividade e resistência de homens negros que, com o samba, deram forma a um dos maiores símbolos da cultura brasileira. Foi no Estácio que o samba ganhou suas bases rítmicas e estéticas que hoje ecoam pelo mundo.

Essa história nos lembra que o samba não é apenas um gênero musical, mas uma expressão profunda da cultura negra, marcada por luta, identidade e ancestralidade. Respeitar o samba é respeitar o povo que o criou, reconhecendo seu lugar de protagonismo. Não há espaço para celebrar a cultura negra enquanto se reproduz racismo ou desumanização. O samba é resistência e, acima de tudo, exige respeito.

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