Os ‘The Voice’ do funk que tentam achar MCs ‘que não desacreditam’ em SP

Situada no Jardim Imperador, zona leste de São Paulo, a Praça do Vinho é um desses locais incomuns da capital. Primeiro, porque ela não se chama assim –o nome verdadeiro é Miguel Ramos de Moura– e muito menos há comércio de vinho ali. Segundo porque, em meio à quadra de basquete e grafites de ídolos afro-americanos, como 2Pac Shakur, Michael Jordan e Michael Jackson, ela recebe semanalmente um coletivo de jacarés.

Não o animal, claro. Mas, sim, um grupo de dez a 15 jovens que trajam roupas da Lacoste (cujo símbolo é o réptil) como uniforme. Eles batem ponto por ali na tentativa de realizar o sonho de se tornarem astros do funk. É que na frente da Praça do Vinho está a sede da Love Funk, uma das principais produtoras do gênero, que semanalmente realiza peneiras na busca de novos hitmakers.

Presente na maioria das letras do funk de São Paulo (em especial da vertente conhecida como consciente), o verso “não desacredita, não” virou um mantra adotado pelos candidatos. É movido por essas palavras que Marcelo Gabriel Sampaio Silva Santos percorre os mais de 21km que separam o bairro Presidente Dutra, em Guarulhos, onde vive, do quartel general da Love Funk, na esperança de ser ouvido e aprovado.

Quando conversou com a Billboard Brasil, o candidato de 21 anos tinha tido seu trabalho recusado 11 vezes anteriormente. Há um ano, conseguiu gravar “Medley Nóis É O Corre”, que não ultrapassou os dois mil acessos. “Todo dia essa correria, né, cachorro?”, filosofa. Marcelo, que adotou o nome artístico de MC Marcelinho MDP sustenta o sonho vendendo balas nos shoppings da cidade. “Mais tarde, colo no Anália Franco”, diz, referindo-se a um dos pontos da classe média alta da zona leste. Nas mãos, uma caixa de guloseimas com os dizeres: “Ajude a realizar um sonho”.  Foi gongado de novo.

Não é só ali que os chefões das produtoras de funk de São Paulo encaram meninos que querem ser ouvidos. Há quem os aborde no baile, na rua, na quermesse. Foi assim que Pedro Henrique Oliveira da Rocha conheceu Alexandre Reis, o Gugu, um dos sócios da GR6 –maior produtora de funk do estado.

Com pouco mais de 11 anos, Pedro Henrique entoava um repertório com palavrões e imagens sexuais que evidenciaram que ali havia um MC em formação. “Ele começou a cantar rap, andava de skate. Mas a gente se encontrou e ele falou: ‘Quero cantar funk novamente’”, relembra Gugu. MC PH, como o menino acabou ficando conhecido, virou um dos maiores MCs de funk do país –é um dos responsáveis por ter colocado “Let’s Go 4” no topo do Billboard Brasil Hot 100.

Como profetizou na letra de “Os Bico Tão se Perguntando”, outro sucesso nos charts, ele se tornou o “cara do momento”, aquele de quem “tá todo mundo comentando”. Uma década depois da ascensão de PH, outro Pedro foi atrás do empresário para entoar suas “putarias melódicas”. Pedro Maia Tempster, o MC Pedrinho, virou sensação do gênero com sucessos como “Dom Dom Dom” e “Se Prepara”. Depois de PH —e antes de Pedrinho— viriam ainda MC IG, MC Livinho e MC Kevin (1998-2021), todos fenômenos do gênero, que inspiram esses jovens não só na arte ou no estilo de vida, mas também na perseverança. O maior concorrente de Gugu na corrida em busca do novo MC estourado é Henrique Viana.

Apelidado de Rato por causa de um criadouro de roedores de laboratório que um tio mantinha em sua casa, é ele quem aponta os canhões da Love Funk (a Kondzilla, outra gigante do funk paulistano, não realiza esse tipo de “reality show” para montar seu vasto casting). É Rato o alvo da aglomeração de jovens na Praça do Vinho, enquanto enrolam cigarro, digamos, artísticos, batem palmas e cantam à espera de aprovação.

Mas, para chegar ao chefão, os candidatos têm de passar inicialmente pelo crivo do DJ L12 e do MC Alef, funcionários da gravadora. “A gente tem ouvido, né? Eu observo a letra. Tem uns que brincam com o flow. Na minha época era mais a melodia, o ‘atabaquezão’”, explica Alef. A quadra de basquete da praça é a primeira parada de um aspirante a MC. Ali, naquele palco improvisado, ele precisa provar que tem boas rimas e desenvoltura suficiente para se tornar profissional. A batalha seguinte é se perder pelos seis andares da sede da Love Funk, com um amontoado de salas e puxadinhos, onde cada canto foi transformado num estúdio de gravação.

O vencedor da rodada é, então, levado para a produtora, onde registra aquele que pode ser o seu pote de ouro. Depois, grava-se um videoclipe, que vai parar no YouTube e nas plataformas de áudio, e o que resta é esperar estourar perante os 11 milhões de inscritos no canal. Se viralizar, eles assinam contrato.

Naquela praça, a Billboard Brasil encontrou as mais distintas biografias. Além de Marcelinho MDP, que depois iria vender balas, estava ali também Eduardo. Por insistência dos amigos, o autoproclamado MC Menor DTM pediu dispensa ao sogro, também seu patrão, e saiu do Capão Redondo (zona sul de São Paulo) pensando se aquilo era o melhor a fazer numa quinta-feira abafada. Já Gabriel Vieira, fã de Felipe Boladão (1989-2019), encarou nove horas de Mirandópolis, no interior do estado, até São Paulo. No bolso, R$ 600 para a passagem de volta e para passar uns dias na cidade.

Kennedy MC foi o vencedor do dia. “Estou desempregado. Já pensei em meter a cara nos estudos. Mas o meu foco no momento é a música. Sempre vai ser. Estou no meio desse caminho, entre trabalhar e estudar”, explica o jovem de 23 anos, antes de entrar em estúdio para ver seu freestyle “Sonhos” ser produzido pelo DJ L12. Kennedy, ao contrário de seus oponentes, ostenta um visual mais sóbrio. Sua postura também é um pouco menos ansiosa. “É a minha terceira vez aqui”, conta ele, que de 9h às 18h trabalha como auxiliar de uma corretora de seguros. O estouro na música ainda não chegou. Lançada há quatro meses, “Sonhos” contabiliza pouco mais de mil visualizações.

As audições da GR6 são mais raras e menos improvisadas do que as da Love Funk. Por isso, quando divulgadas, elas atraem centenas de aspirantes a funkeiros com as mesmas camisas da Lacoste, os bonés de crochê e os agasalhos do Corinthians. Junto deles, mochilas térmicas do iFood e carrinhos de bebê compõem um visual lisérgico, que se acentua no calor de 36 graus que fazia no bairro da Vila Guilherme (zona norte). Mas isso não desestimulou os cerca de 300 moleques que se amontoavam em rodas, treinando versos trazidos no bolso e na memória.

Um deles era Rafael Teixeira, que se apertava entre o bafo da marmita do seu almoço e do asfalto da avenida Conceição. Ao lado dele, estavam sua filha Mariah, de 2 anos, o carrinho de bebê e os ônibus que passavam rente à calçada lotada. O objetivo de Rafael era o mesmo de todos os outros: prender a atenção dos jurados responsáveis pelas audições na GR6. Enquanto dava de comer à filha, Rafael explicou o porquê de tanto perrengue. “Não queria perder a audição e é mais uma história que a minha filha vai ter pra contar”, diz o MC acostumado com a vida de rapper independente e também com programas de auditório: participou do X-Factor, no qual rimou sobre Sabotage enquanto via Di Ferrero acompanhá-lo ao beatbox.

Quem aguarda ali também é o sonho. Todos querem uma vaga em um mercado de trabalho balizado por MCs que venceram na vida e garantiram um triplex para a mãe, tênis Nike nos pés, motos e carros na garagem. Estima-se que um rapper fature entre R$ 20 mil e R$ 40 mil por uma apresentação de 50 minutos –e eles chegam a fazer três por noite, e cerca de 30 por mês.

Seja na Love Funk ou na GR6, o que os MCs disputam, verso a verso, é a atenção dos jurados. O método dos concorrentes é muito semelhante: carregando versos autorais na mente ou no celular, eles indicam se vão querer o acompanhamento da batida mecânica e palmas, ou se vão rimar à capela. Boa parte dos MCs apresenta suas rimas sem acompanhamento. No galpão da GR6, o calor e a extensa fila fazem a procissão virar calvário.

“Eles nem olharam para mim direito”, reclamou um dos MCs ao sair do palco. Com a noite chegando, o galpão já produzia ecos à medida que ia se esvaziando e os últimos candidatos notavam que daquele mato não ia sair sucesso. “Muito obrigado, guerreiro, cantou muito”, dizia um já não muito empolgado Gugu, jurado que teve a companhia de nomes grandes da GR6, como o tímido DJ R7, que gravou o megahit “Baile de Favela” com o MC João, e de revelações como MC Jessy, de Goiás.

Dona de “Ilusão”, Jessy ainda busca os primeiros 100 mil ouvintes no YouTube. “Cara, ver esses menores aqui tentando realizar seu sonho é muito doido. Graças a Deus eu tive essa oportunidade, sou uma pessoa muito feliz. Hoje é a audição, mas amanhã a pessoa pode estar no meu lugar. O meu desejo é ser conhecida no mundo inteiro, fortalecer quem me fortaleceu, sabe?”, reflete ela, descoberta em uma das audições anteriores da GR6 e uma das poucas mulheres presentes no galpão. 

Não por acaso, quem se deu bem naquele dia foi outra mulher. Aparentando mais experiência do que seus concorrentes –e chegando com 38 mil seguidores no Instagram–, a DJ Vick Original, de 25 anos, foi quem atraiu a atenção da banca de jurados. “O negócio é representar as mulheres da forma certa. O bagulho é coisa comercial, que todo mundo vai gostar, no rádio, na TV. As mulheres estão mais para mostrar o corpo do que para enfrentar essa fila de 300 homens aí”, disse a DJ (e agora MC), de forma elétrica.

Enquanto isso, o clima chuvoso fora do galpão esquentava os ânimos dos que ainda esperavam, depois de horas, por uma chance. “Ô, Gugu! Ô, Gugu”, gritavam os quase cem insistentes MCs. Quando o chefe deu as caras, a euforia tomou conta do lugar. Mas não durou muito tempo. Empoleirado numa caçamba com entulhos, o produtor avisou que as audições naquele dia estavam encerradas.

“Nem fui ouvido, mano. Não peguei senha”, lamentava Rafael, o pai da Mariah. Depois de participar de batalhas de rap pelo país e de até ter aberto shows do rapper Djonga, o MC teria que voltar outro dia para mostrar seu trabalho aos chefões da GR6. “Eu só consegui preencher a ficha hoje, porque eles me viram com a minha filha. Mas eu tenho muita história para contar, isso aqui não me resume. Os primeiros nãos são bem frustrantes. Já fiquei depressivo. Mas a vida é assim, essas coisas acontecem para que a gente aprenda a se renovar todos os dias. Eu até posso ter mais experiência do que esses moleques, mas a intensidade do sonho é a mesma”, reflete.

Em “Não Desacredita”, o hoje estourado MC IG, do casting da GR6, diz: “Esperança em um dia melhor, desistir de desistir”. Os versos refletem bem como o aspirante a funkeiro quer muito mais do que um Nike no pé: quer ver o sonho vivo e a mãe num triplex. Seja na Praça do Vinho ou num imenso galpão, os MCs versam como se estivessem em oração. São preces por um futuro igual ao que nomes como Ryan SP, Hariel, Lipi e Paiva cantam para milhões de ouvintes. Mas que outros sonhadores, como Marcelinho MDP, entoam como se fossem louvores do hinário da caminhada que percorrem para que sejam ouvidos. E, quem sabe, dando tudo certo, cantados por outros que lutam para não desacreditar.

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