“Ninguém está querendo vender carne podre”, diz líder de supermercados

Depois que o governo federal descobriu o novo “inimigo público número um” – a inflação de alimentos –, os supermercados foram chamados a Brasília para participar da discussão sobre como reduzir o ritmo do aumento desses preços. O setor deu suas sugestões, que repercutiram em polêmicas graúdas.

O segmento quer vender remédios sem receita, o que arrancou protestos das farmácias. Propôs mudanças na cobrança das taxas do cartão de crédito, o que despertou a grita no setor financeiro, e defendeu a alteração do conceito de validade dos produtos vendidos nas gôndolas, o que resultou num imenso mal-entendido.

“Nós abrimos um leque de confusão”, diz João Galassi, presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). “Mas é uma confusão boa.” Por quê? É isso o que o líder desse ramo do varejo explica, a seguir, em trechos de entrevista concedida ao Metrópoles.

Os supermercados podem ajudar a reduzir a inflação de alimentos?

É possível, sim. Isso se as despesas dos mercados forem reduzidas. Fizemos uma série de propostas para o governo nesse sentido. Aliás, já tínhamos apresentado essas sugestões ao governo Bolsonaro.

Mas como os supermercados, que atuam apenas numa ponta da economia, podem interferir no processo inflacionário?

Não temos o poder de discutir temas como câmbio, dólar e juros, por exemplo. Essas são questões macroeconômicas. Mas existem inúmeras despesas do setor que podem ser reduzidas por mudanças nas leis e regulamentações. E isso irá proporcionar uma redução dos preços.

O que, na prática, pode ser feito?

Em primeiro lugar, o setor tem um alto nível de desconcentração. Isso é uma joia rara no mundo. Hoje, as três maiores empresas do segmento representam 22% do mercado brasileiro. No Peru, as três maiores redes detêm 100% do faturamento dos supermercados. No Chile, 90%; na França, 50%. Para chegarmos a 60% do faturamento, precisamos reunir 1.250 empresas. Nós faturamos R$ 1 trilhão por ano, quase 10% do PIB, sendo que 25% desse valor vem de mais de 300 mil empresas que estão no Simples.

Qual a importância dessa desconcentração?

Isso significa que, em função da alta concorrência, qualquer redução de custos vai ser repassada aos consumidores. Ou seja, como há muita competição, os preços vão baixar se os gastos das empresas diminuírem.

Quais são as propostas levadas pelos supermercados ao governo federal?

Uma delas diz respeito aos vouchers de alimentação e refeição, algo extremamente distorcido no mercado brasileiro.

Por que distorcido?

Uma empresa que oferece o voucher a seus funcionários tem um benefício fiscal para isso. No caso, trata-se de um desconto na folha de pagamentos. Mas esse benefício não está chegando na ponta do mercado.

Por quê?

Porque as empresas que fazem a intermediação desses vouchers impõem taxas altíssimas aos supermercados. Elas podem cobrar 15%, 10%, 6% em taxas. E não podemos fazer nada em relação a isso. Os contratos são leoninos. Os prazos para recebermos as quantias também são muito longos, chegam a 35 dias.

Qual é a proposta nesse caso?

Sugerimos medidas como a reestruturação do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), por meio do PAT e-social, com apoio da Caixa Econômica Federal.

Como funcionaria esse modelo?

A ideia é que a Caixa forneça um sistema para que as empresas depositem o valor na conta do trabalhador, que vai receber um cartão e gastar nos mercados sem essas taxas abusivas. Isso reduz os preços na hora e pode resultar numa economia da ordem de R$ 10 bilhões anuais. Hoje, mais de 200 bilhões rodam no mercado de vouchers de alimentação e refeição a cada ano, sem qualquer regulamentação do Banco Central (BC) e sem nenhum tipo de controle para que essas empresas não explorem o setor.

Há ainda a proposta de venda de medicamentos.

Sim. Queremos que os supermercados possam vender remédios que não precisam de receita (como sal de frutas, antigripais, alguns analgésicos, antigases). Isso pode provocar uma redução de preços desses produtos da ordem de 35%. Essa queda ocorreria como resultado do aumento da concorrência.

Qual é o outro ponto?

É conceito de “best before” (“melhor [consumir] antes”), relacionado ao prazo de validade dos produtos. Esse é um ponto que precisa ser muito bem explicado, porque já provocou vários mal-entendidos. Como vivemos num mundo polarizado, com essa briga da oposição com a situação, quem perde é o consumidor. O fato é que nenhum alimento vai deixar de ter prazo de validade.

O que muda na prática?

Os alimentos que necessitam de segurança alimentar, como carnes, manteriam o prazo de validade. Ninguém está querendo vender carne pobre. Isso seria absurdo. Mas existem outros produtos que, mesmo depois de a data de validade expirar, não significa que o alimento não seja mais adequado para o consumo.

Pode citar um exemplo?

Uma bolacha pode perder a crocância depois de determinado período, mas isso não quer dizer que ela vai estragar após o vencimento do prazo de validade. Isso também acontece com itens como sal, ou mesmo, arroz e feijão. Em alguns desses casos, acrescentaríamos o “best before”, ou seja, o rótulo com a especificação “melhor consumir antes” de determinada data. Se esse produto for consumido depois, ele pode perder a qualidade, mas não é uma questão de segurança alimentar. E isso também reduziria o desperdício de alimentos.

De que maneira?

Voltando ao exemplo do biscoito, o ponto é o seguinte: se o pacote de bolacha tem um prazo de validade até uma data, nós temos de jogá-lo no lixo depois da meia-noite desse dia? Isso não faz sentido.

Outra medida seria a redução do prazo de reembolso dos cartões de crédito.

Exatamente. Estamos sendo pressionados por aumentos das taxas de cartão de crédito, em função da elevação dos juros (essa taxa é paga pelos mercados toda vez que um cartão é usado num pagamento). E o governo, por meio do Banco Central, poderia intervir, trazendo um equilíbrio no prazo de recebimento dos cartões. Em 2022, entramos com uma ação na Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor) contra a Mastercard.

Como o senhor avalia a polêmica criada com as sugestões para a venda de remédios em mercados e as mudanças no cartão de crédito?

Nós abrimos um leque de confusão. Mas é uma confusão boa. Foi com o setor financeiro, com o segmento de farmácias e com a oposição, que criticou o “best before”. Mas esses são pontos que precisam ser discutidos. Se nós não tivéssemos razão, os países desenvolvidos não teriam feito da mesma forma. Eles entraram em conflito. O varejo americano discutiu com os cartões e com os vouchers de alimentação. Agora, ele vende remédios no supermercado e adota o “best before”. Se nós não fizermos isso, nós vamos continuar com a inflação.

Por quê?

Porque você está tendo um avanço do sistema financeiro em cima dos preços dos alimentos. Hoje, a maioria dos grandes bancos comprou empresas de voucher alimentação e refeição. Os bancos compraram ou são sócios. Eles viram o tamanho da oportunidade que esse mercado tem com suas taxas absurdas.

Qual a perspectiva dessas medidas serem implantadas?

O governo nos chamou para dar sugestões. Estamos mostrando todas as possibilidades que existem. E não só essas. Mas o fato é que estamos aceitando uma reserva de mercado das farmácias num produto que é commodity no mundo inteiro. Estamos aceitando uma legislação antiquada com relação ao prazo de validade dos produtos. E nós estamos desperdiçando alimentos. Se o governo decidir implantar nossas sugestões, vamos em frente.

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