No sucesso do filme ‘Ainda Estou Aqui’, um resgate da memória, da autoestima e da bilheteria do cinema brasileiro

Denise Costa Lopes, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

A cerimônia do Oscar, marcada para o próximo dia 2 de março, certamente será a mais aguardada da história. Pelo menos para o cinema brasileiro. O filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles – que conta a história da família do deputado Rubens Paiva, sequestrado e morto pela ditadura durante os anos de chumbo, pela ótica de sua viúva Eunice Paiva – recebeu inéditas três indicações este ano: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz, com Fernanda Torres. Por causa disso, foram inúmeras nos últimos dias as sugestões de contribuições sobre o filme feitas por acadêmicos de diversas áreas das Ciências Humanas para o The Conversation Brasil. Textos que procuram explicar as causas do sucesso. Seja sob o ponto de vista da técnica cinematográfica, da riqueza do roteiro, da qualidade das interpretações ou da importância histórica e sociológica de uma obra que coloca o dedo, com cirúrgica delicadeza, nas feridas da ditadura civil-militar que o Brasil viveu entre 1964 e 1985. No artigo abaixo, a Doutora em Artes Visuais pela UFRJ e professora de formação audiovisual na Comunicação da PUC-Rio Denise Costa Lopes escreve sobre os diversos êxitos do filme: dentro da tela, nas bilheterias, na revisão histórica das atrocidades da ditadura e na autoestima de parte dos brasileiros sobre sua história recente.


Pela primeira vez, desde sua criação em 1929, o Oscar terá um longa brasileiro concorrendo ao seu maior prêmio, o de melhor filme. O fato histórico não para aí. “Ainda estou aqui” (1924), de Walter Salles, concorre também a melhor filme internacional e a melhor atriz com Fernanda Torres.

O feito, um marco para a cinematografia no Brasil, vem invertendo a lógica das bilheterias de cinema, aumentando as oportunidades para projetos audiovisuais dentro e fora do país e contribuindo para um resgate da memória sobre a ditadura e da autoestima brasileira aviltada nos últimos anos por um governo de extrema direita que perseguia a classe artística e que cortou diversas formas de investimento cultural.

A indicação histórica de “Ainda estou aqui” vem na sequência de “Roma” (2018), do mexicano Alfonso Cuarón, primeira produção latino-americana a ser indicada a melhor filme no Oscar, e do sul-coreano “Parasita” (2019), de Bong Joon-ho, primeira obra em língua estrangeira indicada duplamente para melhor filme e filme internacional, e que acabou levando as duas estatuetas, além das de melhor direção e roteiro original.

A evolução dos filmes “estrangeiros” no Oscar

O filme sul-coreano, que teve em 2020 o dobro de indicações de “Ainda estou aqui”, abriu uma perspectiva nova para filmes de produção não estadunidenses no Oscar. O nome do prêmio inclusive mudou de “Melhor Filme Estrangeiro” para “Melhor Filme Internacional” depois de suas vitórias.

De lá para cá, vários filmes em língua não inglesa começaram a concorrer simultaneamente nas categorias de melhor filme e de melhor filme internacional. São os casos do japonês “Drive My Car” (2021), do alemão “Nada de Novo no Front” (2022), do francês “Anatomia de uma Queda” (2023) e do multinacional “Zona de Interesse” (2023), que ampliaram a visibilidade das produções de fora dos EUA.

O sucesso de “Roma” e “Parasita” e a nova cara do Oscar, com mais indicações ao prêmio principal e abertura à diversidade de cinematografias nacionais, amplia as chances de vitória de “Ainda estou aqui”, que vem fazendo boas bilheterias nos cinemas dentro e fora do Brasil.

No momento em que escrevo este texto, o filme de Walter Salles se aproxima de fazer 4 milhões de espectadores no Brasil. Já foi visto por 3,84 milhões de pessoas e arrecadou R$ 84,3 milhões, competindo com blockbusters de investimentos muito superiores como “Mufasa: o rei Leão”, dos Estúdios Disney.

Após o anúncio das indicações ao Oscar, a venda de ingressos de “Ainda estou aqui” no Brasil subiu 89%, e a expectativa é de que ele tenha mais de 5 milhões de espectadores até a cerimônia do prêmio, no dia 02 de março.

No exterior, o filme também faz história nas bilheterias. Já é a maior estreia brasileira na América do Norte, ultrapassando o faturamento médio de “Central do Brasil” (1998), do próprio Salles (US$ 17,9 mil), e de “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund (US$ 17,6 mil).

Nos EUA, “Ainda estou aqui” – ou “I’m still here”, em inglês – é atualmente o 26º filme mais visto do país, arrecadando US$ 125 mil por dia. A média por sala, de US$ 25 mil, é a maior dos EUA hoje, desbancando concorrentes como “O brutalista”, indicado a vários Oscars, e os blockbusters “Mufasa” e “Lobisomen”.

A previsão é de que o filme de Salles supere ainda o número de 500 salas de exibição nos EUA até o dia 7 de fevereiro, consolidando-se como a maior distribuição de um filme brasileiro em território norte-americano na história.

Performance excelente também na Europa

Em Portugal, só nos primeiros dias de exibição o filme fez US$ 256 mil em bilheteria, com 37 mil ingressos vendidos em 37 salas. Superando grandes produções europeias e caminhando para ultrapassar a marca de “Tropa de Elite”, de José Padilha, que em 2007 arrecadou US$ 376 mil no país.

O sucesso de “Ainda estou aqui” ainda deve crescer muito, e está longe de se limitar aos números do business do cinema. No âmbito histórico e sociológico, o filme gerou uma onda de conscientização sobre os 25 anos de ditadura militar vividos pelo Brasil entre 1964 e 1985. Um período de autoritarismo, censura, tortura, morte e desaparecimentos, cuja maioria dos responsáveis sequer foram julgados.

O impacto do filme na busca pela verdade

Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado federal Rubens Paiva, torturado e morto dentro das dependências de repressão do regime em 1971, o filme foca na história de Eunice, viúva de Rubens e mãe de Marcelo. Uma mulher que, com o desaparecimento do marido, de repente se vê sozinha com cinco filhos e uma hercúlea missão de vida: tentar encontrar o corpo e depois lutar pelo reconhecimento oficial de que seu companheiro fora morto pelas mãos do regime.

A certidão de óbito de Rubens Paiva só foi expedida em 1996, 25 anos depois do seu desaparecimento. E isso só aconteceu porque nesse período Eunice estudou Direito, especializou-se em Direitos Humanos e lutou muito pelo documento.

Ainda assim a certidão descreveu o óbito por muitos anos apenas com a expressão “morte natural”. Só agora, coincidentemente um dia depois da indicação do filme ao Oscar, o documento foi alterado e a expressão finalmente trocada pela frase “morte violenta causada pelo Estado Brasileiro”.

Eunice já não estava mais aqui para ver, mas a mudança abre um precedente importante para centenas de outras famílias brasileiras que tiveram parentes desaparecidos e mortos durante a ditadura. Mais um consequência social de um filme que extrapola em muito as salas de cinema e reforça sua importância histórica.

O corpo do ex-deputado, assim como de muitos presos e torturados na época, nunca foi encontrado. E o processo criminal sobre sua morte – aberto apenas em 2014 e que acusa cinco militares por homicídio doloso qualificado, ocultação de cadáver, fraude processual e quadrilha armada – nunca foi julgado. Três dos acusados já até morreram.

O processo, que estava parado, foi reaberto em abril de 2024 pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos. O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, solicitou uma análise sobre o processo à Procuradoria-Geral da República. O pedido, realizado no auge da campanha do filme, que entrou em cartaz no Brasil no dia 7 de novembro, demostra o quanto a obra está contribuindo para a rememoração, reconstituição e correção desses graves crimes cometidos no passado pelo Estado Brasileiro.

Visão do terror a partir do afeto

Apesar de o filme lidar com um período duro da história do Brasil, o diretor Walter Salles – que era amigo de uma das filhas de Rubens, frequentava a casa dos Paiva na infância e conheceu de perto os personagens do filme – traçou um retrato da ditadura a partir do microcosmo particular dessa família. A partir do afeto. E de um enfrentamento da situação retradada feito de forma segura mas leve, simples e bela.

Ao invés da exposição, Salles optou pela subtração, pela contenção. Segundo ele, a história já era pesada demais e a delicadeza tinha que vir em contraponto à brutalidade do período.

Assim, o filme foca no passado, mas acaba por falar também do presente. Eunice, a personagem principal que luta para trazer a público a verdade sobre a morte do marido, é exemplo de resistência em momentos distópicos difíceis. Como os que se avizinham hoje com o avanço da extrema direita no mundo.

O filme também contribui para a recuperação de uma memória nacional adormecida, seja no viés político, seja na valorização de sua arte. De emoção contida, estética simples mas com perfeita reconstituição de época, “Ainda estou aqui” vem enchendo boa parte dos brasileiros de orgulho de sua história. E por tabela fazendo retornar a autoestima de uma indústria audiovisual vigorosa, que entre 2019 e 2022 sofreu com a redução de investimentos públicos e privados promovida por narrativas ideológicas.

Mesmo que “Ainda estou aqui” não ganhe nenhum Oscar no dia 2 de março, os inúmeros prêmios e indicações conquistados já deixaram claro a singularidade e a grandeza da obra. E que todo esse reconhecimento internacional contribua para a conscientização sobre a importância de subsidiar a cultura brasileira. Independente de qualquer governo, sempre carente de muitas regulamentações. Especialmente na área audiovisual.

Denise Costa Lopes, Doutora em Artes Visuais (EBA/UFRJ), pesquisadora e professora de formação audiovisual na Comunicação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

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