Os neorreacionários que vêm das trevas (Por António Guerreiro)

Talvez muitos já tenham esquecido as utopias que dominaram o ambiente cibernético, no início da segunda década deste século, quando as manifestações na Praça Tahrir, no centro do Cairo, e noutras cidades árabes prenunciavam um crescimento revolucionário das liberdades, nomeado com uma metáfora: a “Primavera Árabe”.

A estimular e a fornecer os instrumentos necessários para a mobilização popular estavam as tecnologias digitais de informação e comunicação que – dizia-se – permitiam o movimento espontâneo e completamente horizontal, sem líderes, sem formações hierárquicas. Por todo o lado entoavam-se hinos a este novo potencial de revolta ou até de revolução. A jornalista americana Heather Brooke, a trabalhar em Inglaterra, consagrou este optimismo político-cibernético num livro de 2011 que assegurava no título: The Revolution Will Be Digitised. À “sociedade em rede”, teorizada por um famoso sociólogo espanhol, Manuel Castells, correspondia a revolta e a sublevação em rede, orientadas pela ideia de partilha recíproca, sem as guras da liderança e sem organização vertical.

A crença de que a tecnologia digital estava a promover a colaboração, a transparência e as reivindicações políticas e sociais de uma esquerda universal encantada com as redes e em desencanto com os partidos propagou-se por todo o lado e deu lugar a numerosos acontecimentos: o Occupy Wall Street, os acampamentos na Puerta del Sol, em Madrid, os movimentos hackers politizados, o Wikileaks, o Anonymous, etc. Quem se lembra ainda da máscara, adotada como símbolo, mimetizando o rosto de um soldado inglês do século XVI, Guy Fawkes, que lutou pela Espanha católica?

Todos esses poderes das redes que tinham dado origem às utopias cibernéticas de uma nova esquerda e passavam atestados de inutilidade aos media tradicionais estão hoje mais activos do que nunca e com bastantes provas dadas. Mas mudaram de sítio: foram apropriados por outros utilizadores, passaram a ser moldados por proprietários que investiram neles outros objetivos e ideais. Agora é a extrema-direita neorreacionária que usa esses poderes com grande sucesso.

A rede sem líderes, vista como uma outra forma de fazer política, instaurando uma esfera pública que levava às últimas consequências aquela que o Iluminismo tinha concebido, caiu nas mãos da extrema-direita. E o ideal da leaderlessness foi substituído por uma liderança que se parece cada vez mais com o comando de um Führer com várias cabeças. Estamos agora confrontados com as afecções e a estética do ciberfascismo. O Sieg Heil (a saudação nazi) de Elon Musk, no dia da investidura de Trump, foi a manifestação ostensiva dos instrumentos afetivos do fascismo que estão a ser restaurados.

Não foi esse o primeiro sinal da ascensão dos neorreacionários. No dia 5 de novembro do ano passado, na noite da segunda vitória de Trump, Elon Musk celebrou o seu triunfo partilhando na sua página da rede X esta mensagem que incitava à reunião das massas que tinham votado pelo MAGA, o Make America Great Again: “Dark MAGA Assemble!”. O dark adensava a mensagem, dava-lhe um tom esotérico (é sabido que o culto do esoterismo está na origem dos fascismos). E, repetindo mais tarde a mensagem, acrescenta-lhe outro elemento: “I’m Dark Gothic MAGA”. O imaginário e a estética dark gothic convoca o chamado Dark Enlightenment (isto é, as “Luzes Obscuras”, o “Iluminismo das Trevas”), proposto como doutrina por um neorreacionário inglês, escritor e blogger, chamado Nick Land.

O Dark Enlightenment é um paradoxo que funciona como um nome irónico: é um “Iluminismo” que visa não o progresso, mas o passado. É uma convergência entre as tecnologias do futuro e os valores do passado, cuja realização implica remontar às fontes míticas do Ocidente. E tudo isto fundado numa interpretação do destino da “raça” branca. A estética dark gothic está virada para uma archè, um mito das origens, muito embora se sirva das técnicas futuristas. O Iluminismo obscuro do neorreacionaríssimo de caráter esotérico e pagão é uma espécie de metapolítica que a extrema-direita de Silicon Valley segrega e aspira a difundir no mundo inteiro.

As manifestações e revoltas por volta de 2010 foram a expressão de um novo ambiente cibernético que acreditava em novas formas de mobilização e de organização das massas. O neorreacionaríssimo a que estamos a assistir dá às massas forma de expressão, mas seguindo o modo de as organizar próprio do fascismo. Já não exatamente como o fascismo histórico, mas com as características de um fascismo tardio, um “late fascism”, para usar uma categoria desenvolvida pelo filósofo italiano Alberto Toscano).

Quem imaginaria, em 2010, ou até mais recentemente, que seria esta a realidade do mundo em que vivemos?

 

(Transcrito do jornal PÚBLICO)

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