A terra é dos pretos

Na terra da Balaiada, quilombola é uma chama que nunca se apaga. No século XIX maranhense, pretos enfrentaram a escravidão e a violência do Império. Hoje, os quilombos de Frechal e Alcântara encaram a ganância do agronegócio e o desprezo do Estado. Nessa fenda do tempo, a pobreza e o racismo tentam dizimar um orgulho negro que, atado à terra, resiste.

O terreno comunitário é parte fundamental da identificação quilombola: o chão é seu espelho, um reflexo que “é definido historicamente, e não biologicamente”. Ele entrelaça a herança cultural com a agricultura, a caça e o extrativismo. Porém o Estado, na maioria das vezes, ignora o acesso à saúde, ao transporte e à educação. Tudo parece incitar o abandono, deixar a terra dos antepassados para viver na periferia de qualquer cidade.

A visão do Estado no século XVIII, até o senso comum de nossos dias, define o quilombo com uma reunião de escravizados fugitivos. Na perspectiva preta, é a formação de uma complexa rede social que cultiva sua cultura e “designa um processo de trabalho autônomo, livre da submissão dos grandes proprietários”.

As aspas do parágrafo anterior são do artigo “As identidades quilombolas contemporâneas: nuances das experiências do Maranhão”, assinado pelo historiador Josenildo de Jesus Pereira na Revista Embornal, da UECE – Universidade Estadual do Ceará. O autor traça o percurso da identidade, a opressão, a resistência e as batalhas pelo direito à terra no estado nordestino. Para ele, os quilombolas “vivem uma situação histórica ambígua e revestida por uma profunda vulnerabilidade”.

Somente na Constituição de 1988 os direitos à propriedade aos remanescentes quilombolas foram garantidos. Essa decisão teve forte impacto no Maranhão. De acordo com o Censo de 2022, há 2.025 quilombos no estado, o que corresponde a 23,99% do total no país – é a unidade da federação com mais comunidades rurais ou urbanas históricas negras.

O historiador narra a história do Quilombo Frechal, também chamado de “terras de pretos” pelos seus moradores, que fica na cidade de Mirinzal, numa área de cerca de 10 mil hectares ocupada desde o século XIX por 183 famílias que aram sobrevivências em seus roçados.  No início da década de 1980, um empresário paulista disse que era dono das terras e tentou expulsá-los para produzir guaraná e pimenta do reino.

“Retirar estas terras dos descendentes dos escravos é o mesmo que ditar uma sentença de morte aos homens, mulheres e crianças que nasceram naquele lugar”, afirma. A comunidade sofreu todo tipo de pressão e ameaças durante uma década. Em 1992, após intensa mobilização, com o apoio de diversas entidades, a área foi decretada Reserva Extrativista do Quilombo Frechal.

É conhecido o conflito agrário para a instalação da Base Espacial de Alcântara nos anos 1980. Os militares expulsaram de suas casas mais de 300 famílias de 32 comunidades. Segundo o autor, a empresa Alcântara Cyclone Space abriu estradas, picadas, desmatou árvores centenárias, fez perfurações indevidas e ofereceu o trânsito de veículos pesados sobre áreas de plantio. As organizações sociais entraram na Justiça.

Na época da publicação do artigo, o impasse continuava. Somente em 2024, após 44 anos de , foi assinado um acordo.  O governo decidiu que serão destinados às comunidades 78,1 mil hectares, áreas privadas sobrepostas serão desapropriadas e o território será titulado. Resta saber se a decisão será cumprida. O município de Alcântara tem cerca de 18 mil moradores e 84% deles são quilombolas ‒ a maior proporção do país. E já se sabe que, nesse país, nem sempre o direito dos pretos é respeitado.

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