A vida só quer viver, que o diga o passarinho do Drummond

A vida só quer viver, me disse uma amiga, e eu não podia perder essa frase. Essa amiga acabou de ganhar o segundo neto e me mandou a foto dela com um bebê risonho, gordinho e sereno como se não tivesse acabado de passar pelo susto do nascimento.

A vida foi bem difícil pra minha amiga, a vida não é democrática, tem gente que padece demais, mais do que é possível a um ser humano suportar, mas a vida quer viver.

Diante de tanta pulsão de morte se impondo como destino do mundo, me agarro com fervor à frase de minha amiga, a vida só quer viver — parece coisa de Guimarães Rosa. E fico pensando em vidas que só querem viver. Na vida na minha amiga de 30 anos que levou umas boas rasteiras e agora recomeça do zero, sem nada além dela própria, de sua vontade de viver, e de sua juventude, o que não é pouca coisa.

Na minha amiga que largou um cargo no topo da profissão para passar cinco anos no Japão com o marido e o filho. Um sabático da vida que só quer viver.

Fiquei pensando na Preta Gil que responde com vida e mais vida aos trancos terríveis que enfrenta.

Penso na minha vizinha dependente de crack que deambula pelas ruas há mais de 20 anos, e salvo os momentos em que ela emburaca nas drogas, sempre a vejo limpa, cabelo penteado, de chinelo, corpo altivo, mesmo que esteja em evidente delírio (a vida só quer viver).

Ou no meu amigo na cama de um hospital, sabendo que ia morrer, me pedindo um hidratante e um pente; ou no meu irmão que, à morte, me pediu uma Coca-Cola; ou no Oscar Niemeyer que, às vésperas de morrer, aos 105 anos, abriu os olhos e pediu um cafezinho. Viver, viver.

Ou na amiga que perdeu o único filho e, algum tempo depois, reapareceu nas redes tomando sorvete (a vida quer viver).

Pensei em todos nós que de um jeito ou de outro estamos aqui, no Walter Salles com sua notável discrição se agarrando afirmativamente à boia que o talento lhe deu. Se lhe pedem para comentar a treta com a Karla Sofía Gascón, ele desconversa: “Quando tem ruído, volto ao cinema”. Volta ao sumo da vida que nele quer viver.

Vale para os humanos e para os bichos também. Como o canário do Drummond, o poeta. O bichinho azarado nasceu em cativeiro. “Um dia, o vento derrubou sua gaiola. Fomos encontrá-lo quase morto, de perninha quebrada”.

A mulher de Drummond, Dolores, cuidou com carinho do canário e ele voltou a cantar como só um canário sabe cantar. Passados uns dias, uma gata tentou comer o passarinho. Foi salvo a tempo. O poeta segue contando a vida difícil do bichinho: “Finalmente, um periquito estúpido (não tão estúpido quanto eu, que pensei em fazê-los confraternizar) ataca-lhe a perna, exigindo novo trabalho de recuperação”.

Incomodado com a atadura na perna novamente quebrada, o canário começou a bicá-la, ferindo-se mais ainda. Ficou aleijado, o pobre. “Contra a expectativa, porém, vive. Para cantar pouco e mal, deitado ignominiosamente no chão da gaiola”, conta o poeta em “O observador no escritório” (Record, 2024).

A vida quer viver, repito o mantra que minha amiga inventou. A vida se impõe com uma força titânica, com uma vibração que parece vir do tempo e do espaço profundo que nos trouxe e nos mantêm aqui — vivos.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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