“Machucados”, diz diretora de ONG que resgatou brasileiros no Mianmar

São Paulo — Luckas “Kim” Viana, de 31 anos, e Phelipe de Moura Ferreira, de 26 anos, estão abatidos e machucados, afirmou Cintia Meirelles, diretora da The Exodus Road Brasil, organização não-governamental (ONG) que atuou no resgate dos brasileiros vítimas de tráfico humano no Mianmar.

“Todos os aspectos da dignidade humana deles foram violados”, disse a diretora ao Metrópoles.

De acordo com ela, os dois vão precisar de “muito apoio do governo federal do Brasil, em todos os aspectos”. “Eles vão precisar de assistência psicológica, vão precisar de acolhimento, vão precisar recomeçar. A minha maior preocupação hoje é como vai ser esse cuidado com eles”, afirmou.

A vida no cativeiro

Luckas e Phelipe estiveram em cativeiro em um complexo, chamado por Cintia de compound, onde atua uma central de golpes cibernéticos. Os brasileiros tiveram seus passaportes retidos e foram forçados a aplicar golpes online para levantar quantias de dinheiro para o grupo criminoso que os fez reféns.

“Eu quero deixar muito claro, eles são vítimas de tráfico de pessoas. Eles foram enganados com propostas maravilhosas, geralmente são propostas de sonho, de um trabalho maravilhoso, para trabalhar num lugar lindo, com tudo pago, num salário que ninguém ganha no Brasil”, destaca Cintia.

Conforme a diretora da ONG, eles trabalhavam de 15 a 20 horas por dia em regime de metas. “Vamos dar um exemplo: US$ 100 mil por semana. Se você não bater a meta, você vai sofrer as punições. Quais são elas? Tortura e [extorsão] financeira”, disse.

Além disso, também há a aplicação de multas. Se as vítimas vão ao banheiro e demoram para retornar, uma multa é aplicada. Se o refém não aparece para trabalhar, leva outra multa.

“Sempre tem multa. No tráfico de pessoas, as pessoas têm que entender que a multa sempre vai ser impagável. E esse é o mecanismo, como eles aliciam e como eles não libertam as pessoas”, reforçou Cintia.

Ela destaca que Mianmar está passando por uma guerra civil, e que o governo do país não tem atuação na região em que o tráfico humano é mais intenso. “A gente está falando de uma área muito complexa, muito problemática de lidar”.

Atuação da The Exodus Road

Cintia conta que a organização passou a atuar no caso logo após receber as denúncias. Ela diz não poder responder, no entanto, como ficou sabendo da situação dos brasileiros.

Imediatamente, a ONG prestou apoio às famílias — com burocracia e amparo psicológico — e entrou em contato com o parlamento da Tailândia, país que faz parte do chamado Triângulo Dourado, região que abriga ainda Mianmar e Laos, segundo a diretora, além do Camboja.

“A Tailândia oferece energia elétrica, oferece alimento. Ou seja, indiretamente, ela se beneficia do que está acontecendo em Mianmar, Laos e Camboja”, disse.

A ONG realizou uma reunião no parlamento tailandês, junto de representantes dos governos do Japão, Quênia, Uganda, Etiópia e Cazaquistão – países que têm um volume grande de imigrantes sendo explorados.

Fuga

Não foi a articulação entre governos internacionais, no entanto, que libertou Luckas e Phelipe do cativeiro. Os dois brasileiros fugiram do complexo onde estavam em cárcere em um grupo de 85 pessoas, de 50 nacionalidades.

Conforme Cintia, a fuga estava orquestrada para ocorrer na última sexta-feira (7/2), mas eles postergaram e fugiram na madrugada de domingo (9/2), por volta de 2h30 no horário de Pequim (15h30 do sábado, 8/2, no horário de Brasília).

“Nessa fuga, a gente acompanhou e eles foram interceptados pela DKDA [Exército Democrático Karen Budista], que é um dos exércitos armados daquela região. Mianmar é um país muito complexo e muito complicado por conta da guerra civil e por conta das divisões entre os exércitos armados que tem na área”, explicou a diretora.

O que falta para voltarem ao Brasil

Segundo Cintia, Luckas e Phelipe estão em segurança. Eles ficaram sob o cuidado da DKDA e, em seguida, foram encaminhados para um centro chamado NRM (Mecanismo de Referência Nacional, na sigla em inglês).

“É um centro onde é feito todo o fluxo dos imigrantes que entram na Tailândia. Então, eles estão sendo verificados se de fato eles foram vítimas de tráfico de pessoas, ou se eles, por exemplo, são bandidos. Então, é uma verificação, é um procedimento normal da imigração da Tailândia”, esclareceu a representante da Exodus Road.

Desse centro, eles devem ser levados para a Embaixada Brasileira em Bangkok, onde deve ocorrer o processo de repatriamento para o Brasil, que é feito pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE – Itamaraty).

Cleide Viana, mãe de Luckas, disse ao Metrópoles que os brasileiros devem voltar ao país em 15 dias, conforme foi informado a ela pelo governo federal.

Atuação do Itamaraty

Os pais das vítimas afirmam que o Itamaraty não atuou no resgate dos brasileiros. Questionada, a The Exodus Road disse que não responderia sobre o caso.

O MRE também não respondeu sobre esse tema quando foi questionada pela reportagem. Em nota, o ministério afirmou apenas que o Itamaraty, por meio da Embaixada em Bangkok, “presta assistência aos dois brasileiros liberados após terem sido vítimas de tráfico de pessoas na fronteira entre Mianmar e Tailândia e está tomando as providências necessárias à sua repatriação”.

Em nota enviada na última terça (11/2), o MRE afirmou ter tomado conhecimento da liberdade dos brasileiros “com grande satisfação”. A pasta disse que vinha solicitando os esforços das autoridades competentes, desde outubro do ano passado, para a liberação dos nacionais.

Ainda conforme o ministério, o setor consular do Itamaraty manteve contato permanente com as famílias.

“O Itamaraty nunca ligou pra mim. Ele nunca deu suporte pra gente. A única coisa que eu concordo com o Itamaraty é que na nota para imprensa ele falava assim ‘nós estamos acompanhando o caso’ isso eu concordo com ele. Eles estavam acompanhando o caso e acompanhando as pessoas sofrerem lá”, disse Antônio Carlos Ferreira, pai de Phelipe, ao Metrópoles.

Triângulo Dourado: o epicentro de crimes cibernéticos no mundo

Cintia aponta o Triângulo Dourado, no sudeste asiático, como “epicentro de crimes cibernéticos no mundo”, o que inclui desde jogos de apostas à aplicação de golpes envolvendo namoros virtuais com supostas celebridades, em que as vítimas são extorquidas, além de investimentos em criptomoedas.

Segundo a Interpol, esse mercado clandestino movimenta US$ 3 trilhões por ano.

A ONU estima que até 120 mil pessoas podem estar detidas em complexos em Mianmar e outras 100 mil pessoas detidas no Camboja, vítimas de tráfico humano e escravização moderna.

De acordo com a diretora da Exodus Road Brasil, todos esses crimes são originários da região e ocorrem com frequência no território. “Por que essa região é crucial e por que tem toda essa problemática? Porque ninguém entra ali. Não existe uma força policial, não existe um governo que vai fazer uma ação imperativa e efetiva”, explica.

As empresas (compounds) que mantêm as vítimas reféns são dominadas pela máfia chinesa, afirmou Cintia.

“Imagina uma relação onde você tem um governo que está em guerra civil, e você tem vários tipos de grupos armados, disputando seus espaços, aliciando e lucrando. No topo disso você tem o governo da China com a máfia chinesa. É uma combinação perfeita para não ter articulação nenhuma”.

Como denunciar tráfico humano

Cintia destacou a falta de conhecimento da população sobre as formas de atuação e, principalmente, de como denunciar casos de tráfico humano — o que ela atribui a falhas das políticas públicas.

“Quais são os canais de prevenção que o governo federal oferece no Brasil? Quais são as campanhas que existem para falar sobre o tráfico de pessoas? Quais são os mecanismos? Quais são os canais de denúncia? Isso eu acho muito importante falar, porque nós não temos no Brasil. Existe no papel, mas na prática a gente perde”, provocou.

Conforme o MRE, o Portal Consular do Itamaraty alerta sobre o aumento do número de casos de recrutamento de brasileiros para trabalho em plataformas digitais de apostas, na Ásia, em condições migratórias e laborais precárias.

A pasta afirmou ainda que o Itamaraty tem ativa participação no IV Plano Nacional de Combate ao Tráfico de Pessoas. Neste âmbito, o órgão produziu guias online sobre tráfico de pessoas.

No país, para denunciar casos de tráfico de pessoas, contrabando de migrantes, tráfico de mulheres e outros crimes semelhantes às autoridades brasileiras, disque 100 ou ligue para o número 180.

Para entrar em contato com a Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, ligue para (61) 2025-9663 ou (61) 2025-3992, ou mande um e-mail para [email protected].

O MRE indica ainda pedir ajuda à National Human Trafficking Hotline (Linha Direta Nacional de Combate ao Tráfico de Pessoas, em tradução), com sede nos Estados Unidos (EUA). Para ligar para a polícia estadunidense, ligue 911.

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