O racismo no mundo corporativo

São Paulo, anos 2000. A trainee chega para seu primeiro dia de trabalho em uma multinacional e se surpreende ao ver um homem negro em uma sala de diretoria. Entre eles há uma distância que não é somente hierárquica. Nos anos 1980, ele era o único negro na empresa, remando com a estratégia possível: competência e silêncio – afinal, por que debater o racismo em uma democracia racial? A jovem é diferente, cultiva confiança e consciência, é filha dos movimentos sociais que desaguaram nas ações afirmativas. Para ela, falar de racismo era urgente.

No pano de fundo entre essas duas décadas pairam as mudanças no debate sobre o racismo e na atuação dos movimentos negros. São duas gerações que chegam ao mundo corporativo em contextos distintos. Mergulhar nessa questão é o intuito do artigo “Da Estratégia individual à mobilização coletiva: Construção do sujeito nas trajetórias profissionais de executivos negros”, que Pedro Jaime, Humberto Reis dos Santos-Souza e Audrey Silva Hein publicaram na Revista Novos Estudos do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) em 2024.

A primeira geração, que acompanhou o fim da ditadura militar, é produto do conflito das ideias da FNB (Federação Negra Brasileira) e o MNU (Movimento Negro Unificado). A FNB buscava a integração do negro na sociedade através do trabalho. O MNU, que dominava o debate, tinha forte apelo jovem e era um movimento de resistência, marxista, que celebrava a África e denunciava o racismo no país. ´

Um jovem negro sonhando com uma carreira em uma multinacional era um “traidor”. É o que conta um sobrinho de um importante ativista que militava na juventude negra enquanto trabalhava em uma corporação: “O jovem que, como eu, pretendia fazer uma carreira executiva não era bem-visto pelo movimento negro. Era como se fosse um “demônio” capitalista. Então, passei a focar na carreira, deixando de lado o engajamento no movimento. Fiz a minha luta de forma individual”. Restava trabalhar muito, tecer alianças para seguir na carreira e lidar com os custos psicológicos do preconceito.

Isolados no mundo dos brancos, viver era permanecer na defensiva, evitar o conflito, blindar-se da discriminação. “Criei uma armadura para se proteger do racismo, até por receio de tratar esse assunto num ambiente hostil. Ademais, estávamos sozinhos”, disse outro executivo. “Lembro que em 1990 foi lançado pela matriz nos Estados Unidos um programa de diversidade. Mas no Brasil não havia condições para se criar um comitê de negros. Éramos pouquíssimos e o mundo empresarial brasileiro não estava preparado para abrir esse debate. Nem eu tinha uma visão crítica do tema. Daria visibilidade a um problema que ninguém estava a fim de enxergar”, analisa um funcionário de uma multinacional.

As situações criadas pela democracia racial da época tensionavam-se entre a violência e o constrangimento, como relata outro executivo: “Comecei a desenvolver uma técnica na segunda empresa em que trabalhei. Lá, os colegas só contavam piada de preto. Quando elas iam começar, contava outra antes [risos]. Eu falava assim: “Essa já conheço, deixa eu te contar outra”. Foi a forma que encontrei para me defender naquela situação: antecipar a tiração de sarro”.

A Segunda Geração

A jovem trainee que começou sua carreira nos anos 2000 não se depara com um muro, mas assiste a um horizonte; sua negritude abandona uma ilha e passa a caminhar em um continente. A discriminação persiste, mas ela não está sozinha.

A partir dos anos 1990, o movimento negro brasileiro deixa o anticapitalismo, abraça a integração – um eco tardio da FNB – e passa a articular-se através de ONGs. Um caminho de institucionalização que exige do Estado medidas concretas para combater o preconceito racial e suas desigualdades sociais perversas. As ações afirmativas são seu martelo e foice.

Fernando Henrique Cardoso reconheceu oficialmente a existência de racismo no país; Lula criou a Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial e diversas universidades públicas implementam ações afirmativas para a inclusão de negros no ensino superior. Dilma reserva 50% das vagas nas universidades federais para candidatos oriundos de escolas públicas e de famílias de baixa renda e as cotas são julgadas constitucionais pelo STF. O movimento é negro, capitalista e irrefreável.

Como o reconhecimento da esfera pública, o enfrentamento desembarca na iniciativa privada. Sob a justificativa da redução de empregos, os maiores bancos brasileiros recusam-se a adotar cotas ou programas de diversidade. Após a denúncia de diversas entidades, a Procuradoria Geral do Trabalho instaurou inquéritos. O MPT propôs um Termo de Ajustamento de Conduta. Proposta recusada. Foram ajuizadas ações civis públicas. Somente em 2006, algumas empresas do setor implementaram programas de trainee para jovens negros, em parceria com a Unipalmares.

Esses programas foram um rio para que executivos negros pudessem navegar suas carreiras. Iniciativas que permitiram a um jovem negro, trainee em um banco, dizer: “Sempre que caminhava ali pela avenida Paulista e passava pela sede da empresa, ficava pensando: “Imagina um dia eu trabalhando numa organização dessa!”. Mas considerava esse um sonho muito distante, inalcançável. Daí veio o programa e hoje me vejo no banco. Tem sido uma experiência fantástica!”

O trabalho conclui que essa segunda geração não é um conjunto de trajetórias individuais, mas o resultado de ações e articulações do movimento negro sobre essas empresas. Há um sentimento de solidariedade social, apoio familiar e um discurso coletivo contra o racismo. Entretanto, sobre cada indivíduo ainda pesa uma cobrança comum em uma sociedade desigual: “A gente é vidraça, a gente tem que se blindar porque não podemos falhar. Se falharmos, prejudicaremos não apenas a nós mesmos, mas a uma série de pessoas que estão numa fila enorme”, alerta um dos entrevistados.

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