Sem anistia 2 (por Mary Zaidan) 

Reza a lenda que o Brasil só começa a funcionar depois do Carnaval. O Congresso, o Supremo e o governo Lula fazem valer o dito mesmo quando a folia só acontece em março. Passados 45 dias de 2025, o país não tem orçamento, o STF não pegou no tranco, e o governo continua sem norte, premido entre a força do Centrão, a inflação dos alimentos e a impopularidade recorde do presidente Lula. Para que o ano tenha início no pós-Momo, vem aí mais um acordo espúrio: anistia para os patrocinadores das emendas secretas.

O perdão aos parlamentares propositores das malfadadas emendas do relator (R7), fruto da parceria Jair Bolsonaro-Arthur Lira, secretas por natureza, das individuais e de bancada, ambas impositivas, das de comissão e do puxadinho das emendas PIX, é a base do acordo que os novos presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), pretendem tabular em troca – pasmem – de votar o Orçamento da União/2025, peça obrigatória para o funcionamento do país.

A ideia obedece a dois tempos. Primeiro, as emendas individuais impositivas bloqueadas pelo ministro do STF Flávio Dino, por falta de transparência e rastreabilidade, seriam remanejadas para a categoria de emendas de comissão, sob a gerência do Executivo. Ou seja, o Congresso oferece ao governo a “chance” de voltar a ter alguns milhõezinhos para o toma-lá-dá-cá do dia a dia em troca da manutenção do sigilo do passado que, segundo investigações da Polícia Federal, garantiu nacos da corrupção. Há pelo menos 20 parlamentares suspeitos. Com o modelo, o governo recuperaria parcialmente o poder de barganha, ainda que de forma nada republicana, para fazer algumas de suas propostas avançarem.

O segundo movimento inclui Dino, com quem os presidentes das duas casas legislativas e o representante da Advocacia-Geral da União devem se reunir no próximo dia 27. Além de apresentar a solução pactuada com o Executivo, que anularia o poder dos deputados e senadores sobre as emendas suspensas pelo ministro do Supremo, os congressistas vão propor transparência total – daqui para a frente.

As investigações da PF sobre corrupção com emendas secretas, engrossadas com a operação EmendaFest, deflagrada na última quinta-feira, que localizou até intermediários de emendas com 6% de comissão, fragilizou o Congresso na negociação. Ainda assim, Dino deve aceitar o compromisso com o futuro, sem abrir mão do julgamento dos eventuais indiciados por desvios.

A negociação é vista em Brasília como concertação: o governo, com orçamento engessado, ganha um pouco de fôlego; o Congresso até perde um tico, mas não muito, e se livra de ter de responder sobre o passado, o que seguramente ampliaria o número de parlamentares que a PF já tem em mira. Por sua vez, Dino ganha a aura da conciliação.

Tudo perfeito não fosse o fato de tudo estar errado. Perdoam-se corruptos,  banalizam-se crimes, agridem-se todos os que pagam impostos. Enterra-se o país.

Em que mundo congressistas têm aval do governo para distribuir – e, em vários casos, embolsar – dinheiro do cidadão em segredo, sem contar quem enviou e quem recebeu? E ainda serem anistiados? Em que planeta uma Corte Constitucional negocia os ditames da Constituição com as partes, como se fosse um juizado de pequenas causas, um conselho arbitral? Em que órbita está um país que admite esses descalabros sem condená-los?

A anistia articulada para beneficiar parlamentares emendas-sujas se soma aos perdões que o Brasil inventa para proteger uns e outros. Já teve perdão de dívidas de campanha e crimes eleitorais. Para encerrar a ditadura, promoveu-se uma anistia ampla, geral e irrestrita, com pesos iguais a diferentes, visto que um dos lados que torturava e matava era o Estado. Agora, sob o falso pretexto de pacificação, parte do país engata na anistia para os golpistas do 8 de janeiro de 2023, com olhos no perdão do inelegível Bolsonaro, que deve ser denunciado pelo procurador-geral da República ainda antes do Carnaval.

Assim como no domingo passado, insisto: sem anistia! De nenhum tipo. É preciso dar um basta.

 

Mary Zaidan é jornalista 

Adicionar aos favoritos o Link permanente.