Famílias mais pobres já gastam 22% da renda com alimentação

 

Não é só agora em 2025 que os preços dos alimentos têm assustado os brasileiros. Secas e enchentes mais frequentes, pandemia, guerra na Ucrânia e alta do dólar fizeram com que as compras do supermercado ficassem bem mais caras nos últimos anos.

Com isso, o peso dos gastos com alimentação no orçamento das famílias brasileiras aumentou de forma significativa, fazendo com que qualquer alta no preço desses itens agora seja percebida de forma bem mais intensa pelos consumidores, sobretudo os mais pobres.

Estudo do economista André Braz, coordenador de Índices de Preços da FGV, ao qual O GLOBO teve acesso com exclusividade, mostra que os alimentos já consomem 22,61% do orçamento das famílias de renda mais baixa (de 1 a 1,5 salário mínimo).

Em janeiro de 2018, essa proporção era significativamente menor: 18,44%. Esse avanço se deu mesmo com a retomada da política de aumento do salário mínimo (atualmente em R$ 1.518) acima da inflação em 2023.

Desde o início de 2020, pouco antes da pandemia, a alimentação no domicílio acumula alta de 55,87%, bem acima dos 33,46% da inflação média brasileira medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE, no mesmo período. Foram anos seguidos de altas fortes, à exceção de 2023, quando o peso do grupo alimentar no orçamento ficou praticamente estável, com leve queda de 0,52%.

— Como é um consumo de itens básicos, você pode até substituir itens da alimentação, mas não deixa de comprar. A despesa vai comprometendo parte cada vez maior do orçamento — explica Braz.

A inflação de alimentos é um dos fatores que têm sido apontados para explicar a queda da popularidade do presidente Lula. O professor Luiz Roberto Cunha, professor da PUC-Rio e especialista em inflação, diz que a previsão é que esse grupo de produtos suba menos que a inflação média neste ano.

Mesmo assim, como são aumentos em cima de aumentos, o consumidor está mais sensível a qualquer reajuste no supermercado. Cunha prevê que o IPCA termine 2025 em 5,03% e que a a inflação dos alimentos, em 3,91%.

— Alimentação subiu muito desde 2020, tem ficado acima da inflação. Mesmo se parar de subir, está num patamar alto. Qualquer alta tem peso maior no bolso do consumidor. A carne deve subir menos este ano, 6%, mas depois de já ter aumentado 20% no ano passado.

Efeito ‘potencializado’

A economista Maria Andreia Parente, do Ipea, diz que o peso crescente da comida no orçamento doméstico “potencializa” o impacto do reajuste de alimentos. Ou seja, faz as famílias terem percepção maior da alta nos supermercados ou nas feiras. Ela acompanha os índices de inflação por faixa de renda. Entre os que têm renda domiciliar muito baixa, de até R$ 2.202,02, o comprometimento já chega a 29%.

— Para os mais pobres, com orçamento mais restrito, o aumento de preços pesa proporcionalmente mais. Ainda mais quando atinge produtos básicos, como aconteceu no ano passado, quando subiu o preço de carne, frango, leite, ovos e pão — diz a pesquisadora.

Com a inflação dos alimentos, o grupo de produtos consome mais das famílias que os gastos com habitação, que incluem aluguel, luz e gás, e já ultrapassou os transportes. O vigilante Edson Falcão Júnior, de 44 anos, teve de fazer adaptações para encarar a alta nos itens alimentícios. Sobrando menos no bolso depois de garantir a comida da família, ele precisou mexer na cobertura do plano de saúde. E cada ida ao supermercado é precedida por intensa pesquisa de preço.

— Se não for assim, a gente não consegue comprar as coisas. A carne está com o preço lá em cima. Se a gente não consegue comprar num dia de promoção, troca por uma carne mais barata — conta.

Impacto no andar de Cima

Edson, a mulher e o filho de 15 anos estão consumindo menos azeite (um dos vilões da inflação recentemente) agora e preferem itens de marcas mais baratas. O vale-alimentação fornecido pelo empregador dele era suficiente para as compras do mês. Não mais.

— Não conseguimos mais comprar tudo o que precisamos só com vale — ele diz.

Os alimentos também estão pesando mais no topo da pirâmide. No estudo de Braz, mesmo para lares com renda acima de 30 salários mínimos, o gasto com comida subiu de 9,23% em 2018 para os atuais 11,32% da despesa total.

No ano passado, quando a alimentação no domicílio subiu 8,23%, houve uma “tempestade perfeita” para impulsionar aos preços da comida, afirma Braz. Além da alta de 27% do dólar frente ao real, que encareceu itens importados e diminuiu a oferta dos exportados — por ficarem mais competitivos lá fora —, houve os fenômenos climáticos El Niño e La Niña, provocando seca e chuva mais severas. O café foi um dos mais dos atingidos pela instabilidade climática. O pó subiu 50,35% nos últimos 12 meses terminados em janeiro. A carne, 20%.

— O que mais preocupa é o pouco espaço de tempo entre esses fenômenos climáticos. Antes de 2000, eles aconteciam a cada cinco, sete anos. Agora, acontecem de dois em dois anos. A ocorrência desses extremos climáticos torna mais difícil controlar a inflação dos alimentos — diz Braz.

Essa alta de preços por menor oferta vai tornar mais difícil o trabalho do Banco Central (BC) para controlar a inflação, já que secas e enchentes não têm sido mais transitórias, alerta o pesquisador da FGV:

— Normalmente, boa parte desses aumentos acumulados na carne, no leite, em verduras, legumes e frutas teriam sido devolvidos. Mas não é o que está acontecendo.

Além disso, como a inflação dos alimentos é menos sensível à alta de juros, já que comida é um bem essencial, o espaço de manobra do BC com a política monetária fica mais restrito com esse grupo consumindo parcela cada vez maior da renda das famílias.

Se os fenômenos climáticos não são exclusividade do Brasil, o comprometimento do orçamento doméstico com os alimentos aqui é maior. Em países desenvolvidos, com menos desigualdade social, esse grupo de produtos pesa menos na média da inflação.

— Se a alimentação não pesasse tanto como acontece em países desenvolvidos, mesmo que subisse além do normal não afetaria tanto a dinâmica da política monetária, já que os juros poderiam atuar mais em serviços e bens duráveis para conter o avanço da inflação — explica Braz.

O governo tem aventado algumas soluções. Está voltando com estoques reguladores, como o do milho. Para Braz, essa pode ser uma saída, mas Cunha lembra que, no caso da carne, por exemplo, essa medida não funciona.

Para reduzir o impacto das mudanças no clima nas culturas, a Embrapa está desenvolvendo sementes que podem tolerar melhor seca, calor e alagamentos. Juliana Yassitepe, pesquisadora da Embrapa Agricultura Digital, trabalha na mutação genética do milho para torná-lo mais tolerante à seca, em parceria com a Unicamp no Centro de Genômica Aplicada às Mudanças Climáticas.

Ela diz que as alterações do clima vêm ocorrendo tão rapidamente que dificultam a pesquisa. Outro problema é o surgimento de pragas. Uma delas é o enfezamento, doença transmitida por um inseto chamado cigarrinha que abate o milho.

— Isso nunca foi um problema, não causava perda econômica. Com aumento da temperatura, o inseto se multiplica mais rápido. Não há proteção ainda para esse tipo de praga — ela diz. — Estamos com dificuldade de prever condições climáticas para nos prevenir. Houve geada em Goiás, onde nunca havia acontecido.

Fonte: O Globo

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