Guerra na Ucrânia, três anos: como Zelensky passou de herói da resistência a alvo de críticas

 

“Um ditador sem eleições, é melhor que Zelensky aja rápido ou ele não terá mais um país”, esbravejou, na semana passada, o presidente dos EUA, Donald Trump, em mais um disparo de sua série de ataques contra o líder da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. Trump não esconde que quer um acordo de paz a curto prazo, e que vê no presidente russo, Vladimir Putin, a maneira mais rápida para tal — mesmo ignorando os custos internos e os próprios ucranianos.

A mudança de postura da Casa Branca — agora mais afável a Moscou — tornou evidente uma transformação no olhar sobre o líder ucraniano, que foi louvado como um herói na resistência à invasão russa, mas que passou a ser questionado internamente e, não raro, a ser criticado até por seus aliados ocidentais.

Ao ser eleito em 2019 com quase 75% dos votos, Zelensky era tratado como o popular ex-galã de cinema e ex-comediante que se viu em um papel similar ao do azarão que interpretou na série “O Servo do Povo”: um professor de História que chegou à Presidência.

Mas, após um início cheio de solavancos, incluindo a gestão durante a pandemia da Covid-19, e em meio a denúncias de corrupção, sua popularidade se esfarelou. Uma pesquisa do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev mostrou que, em fevereiro de 2022, quando havia rumores sobre a invasão russa, apenas 37% dos ucranianos confiavam nele.

Então, há três anos, Putin tomou a decisão de avançar com milhares de tanques, soldados e aeronaves que acumulou por meses na fronteira. Alguns esperavam uma vitória rápida da “operação militar especial”, com a derrubada de Zelensky e a instalação de um governo pró-Kremlin em Kiev.

Como revelaram os pesquisadores Samuel Charap e Sergey Rachenko na revista Foreign Affairs no ano passado, o presidente ucraniano chegou a negociar um acordo de cessar-fogo nas primeiras semanas do conflito, que previa o abandono das pretensões de ingressar na Otan e abria caminho para anexações russas.

O plano naufragou, por pressão ocidental e pelas mudanças no terreno: o recuo russo nos arredores de Kiev e em cidades como Kharkiv, somado às denúncias de crimes de guerra em Bucha e Irpin, deram a Zelensky a esperança de que era possível vencer um dos mais poderosos exércitos do planeta. Armas simples, como os drones turcos Bayraktar TB-2, passaram a conviver com outras enviadas pelos EUA e aliados europeus, em ações que provocaram grandes perdas às linhas inimigas.

Em maio de 2022, com o fracasso das negociações de paz, Zelensky já era citado como um herói de guerra, e era uma figura recorrente em entrevistas à imprensa internacional, concedidas em seu bunker em Kiev.

— Superaremos o inverno, que começou em 24 de fevereiro e ainda persiste neste 8 de maio, mas que definitivamente terminará. O sol ucraniano o derreterá! — disse ele, na data em que a Europa celebra o fim da Segunda Guerra.

Neste momento, a confiança em Zelensky estava em 90%. Mas as armas ocidentais e o ímpeto do líder ucraniano não se mostraram suficientes. Apesar dos recuos russos em Kiev e Kharkiv, Moscou conseguiu avançar no sul e fortalecer suas posições no leste. Uma contraofensiva em 2023, vista como crucial para virar o jogo, não conseguiu os objetivos esperados, afetando a confiança das tropas. As deserções se multiplicaram.

Em entrevista à Associated Press em dezembro de 2023, Zelensky elevou o tom em relação aos aliados ocidentais, afirmando que não recebeu as armas que havia pedido, e sugerindo que isso afetou o resultado no campo de batalha. Nos meses seguintes, peregrinou por capitais da Europa e por Washington em busca de armamentos, como os mísseis de longo alcance ATACMS, e da autorização para usá-los contra o território russo.

Crise interna

Se no campo de batalha a situação era difícil, no campo doméstico as coisas não eram mais simples. A união das forças políticas vista logo após a invasão começou a ruir no final de 2023, e o fim do mandato de Zelensky, em maio de 2024, fez com que alguns adversários exigissem que ele entregasse o poder ao Parlamento até novas eleições — a Constituição permite que um presidente permaneça no poder durante a Lei Marcial.

As mudanças no governo ao longo de 2024 também evidenciaram fissuras internas. A demissão do comandante-chefe das Forças Armadas, Valerii Zalujny, foi tratada não como uma decisão estratégica, mas como um duelo entre os dois homens mais populares da Ucrânia. A saída de Dmytro Kuleba, o chanceler que era um dos rostos mais conhecidos no Ocidente, mostrou que havia pouca disposição para dissidências.

Para a oposição, a decisão de invadir a região russa de Kursk, em agosto, foi uma maneira de apaziguar um país cansado da guerra, e afastar as atenções da crise política — segundo o Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, 59% dos ucranianos confiavam em Zelensky naquele momento.

Fator Trump

A chegada de Trump à Casa Branca soou como um golpe final. O americano sinalizava que poderia aceitar um acordo de paz com termos favoráveis aos russos, incluindo a concessão dos territórios ocupados. Na semana passada, após um telefonema com Putin e uma reunião entre representantes de Moscou e Washington na Arábia Saudita, o ucraniano disse que o republicano tentava “agradar” o Kremlin. Dias antes, havia rejeitado um plano americano para ceder 50% de suas terras raras aos EUA, como forma de compensação pela ajuda militar e financeira.

A reação não poderia ser pior. Trump acusou a Ucrânia de provocar a invasão russa, disse falsamente que a popularidade de Zelensky era de 4% e, repercutindo argumentos da Rússia, o chamou de “ditador”.

Mas, em uma reviravolta que guarda semelhanças com os poemas políticos de Taras Shevchenko, fundador da literatura moderna ucraniana, os ataques podem ser uma tábua de salvação para Zelensky. Após as críticas, até adversários saíram em sua defesa. Borys Filatov, prefeito de Dnipro, sugeriu que, hoje, apenas os ucranianos podem criticar ou elogiar o presidente. Yaroslav Jeleznyak, deputado de oposição, afirmou que Trump, ao atacar Zelensky, está atacando o Estado ucraniano.

Fonte: O Globo

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